A primeira gaveta do enorme armário de aço no gabinete do juiz federal Odilon de Oliveira está cheia. São inquéritos da polícia federal, gravações telefônicas, cartas, recortes de jornal, bilhetes saídos de presídios e extensas investigações. Tudo, absolutamente tudo sobre o mesmo tema: planos e ameaças para matá-lo. É que Odilon fez alguns inimigos durante seus 24 anos atuando na Justiça Federal. E ninguém fica imune depois de ter desestruturado dezenas de organizações criminosas, ter condenado mais de 200 traficantes – ele perdeu a conta – e ter confiscado bilhões de reais do crime organizado.
É por isso que Odilon anda sempre cercado de agentes federais fortemente armados. Já são 13 anos vivendo em função dessa blindagem. Nesse tempo, ele chegou a ter oito policiais 24 horas ao seu lado, sem rodízio. Quantos são hoje? Ele responde, mas depois os próprios agentes pedem para que esse número não seja divulgado. O fato é que Odilon nunca está desacompanhado. Na formatura de um dos seus filhos, por exemplo, a lista de convidados da família Oliveira teve que ser inchada. Dez seguranças foram com o juiz, sendo cinco homens e cinco mulheres – assim poderiam formar par na hora da valsa.
Tanta escolta não é exagero, a cabeça de Odilon está mesmo a prêmio. Anos atrás, uma investigação feita em torno de um plano traçado para sua morte revelou que o pistoleiro embolsaria R$ 1,5 milhão. Seus inimigos são grandes. Uma das pastas da tal gaveta cheia de seu gabinete tem uma lista com 61 nomes. Todos grandes traficantes internacionais que poderiam tramar contra sua vida. Entre eles está lá: “Luiz Fernando da Costa (Fernandinho Beira-Mar)”. Justifica-se: Odilon foi juiz corregedor do presídio federal de segurança máxima de Campo Grande de 2006 a 2009. Nesse tempo mandou Beira-Mar algumas vezes para o RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado – o tal castigo. E está prestes a sentenciar o traficante num processo por lavagem de R$ 11 milhões.
Além disso, o juiz foi responsável por descobrir o plano de Beira-Mar para sequestrar um dos filhos do ex- presidente Lula, em 2008. A trama começou a ruir quando Odilon interrogava o megatraficante colombiano Juan Carlos Abadía, na época preso em Campo Grande. Interessado em conseguir alguns privilégios com a Justiça, Abadía vazou o plano durante o interrogatório – e Odilon iniciou o processo para acabar com o projeto de Beira-Mar. A indisposição com o alto escalão do Comando Vermelho estava feita. E não seria diferente com o PCC. Odilon condenou o traficante Cabecinha, responsável por enviar cocaína direto da Bolívia para a organização.
Odilon recebeu a reportagem da Trip em seu gabinete na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul e também em sua casa, onde vive com a mulher e dois dos três filhos. Uma residência espaçosa, com quarto exclusivo para os agentes federais, bem diferente da casa simples onde ele cresceu na roça no interior do Estado, depois de ter saído ainda criança com a família toda de Exu, em Pernambuco, sua cidade natal. Na conversa ele fala sobre corrupção, legalização de drogas, decepção com a justiça brasileira, controle das fronteiras e privação da própria liberdade.
“Não tenho aquela liberdade de frequentar qualquer ambiente. Fico numa situação de preso no regime semiaberto”
O senhor pode ser considerado o maior inimigo dos traficantes no Brasil?
Bom, os jornais, especialmente do Paraguai, anunciavam isso. “O inimigo número 1 do tráfico”, isso já foi manchete de vários jornais de lá. E do Brasil também. Na realidade, eu já condenei um montão de traficantes e contrabandistas. Sempre fui bastante rigoroso. De modo que minha imagem já é rotulada pelo mundo do crime como sendo o lado adverso, o inimigo. Quer dizer, dentro da criminalidade organizada eu já sou um cara mal querido, mesmo por aqueles que eu nunca sentenciei.
Já fez um levantamento do prejuízo que causou a esse crime organizado?
Tenho uma estimativa de 2005 pra cá, quando esta vara foi especializada em lavagem de dinheiro vindo do tráfico, sonegação e remessas pro exterior – que também tem relação com o tráfico. De lá pra cá nós sequestramos do crime por volta de 85 fazendas, 370 imóveis, 18 aviões, 600 veículos e 14 mil cabeças de gado.
E quanto isso significa em dinheiro?
Foi feita uma estimativa de que isso dá uns R$ 2 bilhões. Pra você ter uma ideia, eu sentenciei um traficante recentemente e confisquei dele um conjunto residencial fechado inteiro, com nove sobrados, um avião e mais três mansões. Isso é um baque danado pra pessoa. Surrupia mesmo o patrimônio. Aí é que a pessoa chia, né? E chia bonito.
Bom, isso explica o porquê de tantas ameaças de morte. Qual foi o plano mais recente descoberto?
Foi agora no fim de 2010, mas eu não gostaria de dar nenhuma informação porque está em investigação. A fase mais intensa foi quando atuei em Ponta Porã [entre 2004 e 2005], na divisa com o Paraguai. Acho que foi meu melhor momento como juiz federal. Não tinha uma semana em que eu não recebia uma ameaça de morte. Fiquei viciado naquela adrenalina. Foi lá que eu passei a viver no fórum depois de ter sofrido dois atentados. Eu estendia meu colchonete no chão e dormia ali mesmo. E em frente ao meu gabinete dormiam oito agentes da polícia federal.
É mais perigoso para um juiz investigar a corrupção política do que o tráfico?
A justiça penal no Brasil, no meu entender, virou ficção. Tem uma justiça para aquela pessoa que é cheia de pendor político, social e econômico. Nitidamente separada da outra justiça. Olhe: 23% do trabalho da polícia federal é dedicado ao combate à corrupção. E 15% é dedicado ao combate às drogas. Em 2010, todos os presos por tráfico no Brasil somavam 105.500 pessoas. Como a atuação da PF é maior para corrupção, você imagina que deve ter um número bem grande de presos também. Mas são 794 detidos. E desses 794 você vai achar só aquele servidor que pegou uma fiança de R$ 500 e embolsou. Isso responde a sua pergunta? E tem outra coisa que acho muito grave também. O sistema penal já é feito para beneficiar os grandes, alguns exemplos provam isso.
Que exemplos?
Na área do tráfico a legislação prevê de 5 a 15 anos de prisão, independente da quantidade de droga. Se um sujeito trafica 10 kg, ele é primário, de bons antecedentes, vai pegar cinco anos. Se ele trafica 10 t, nas mesmas condições do outro, ele vai pegar no máximo uns cinco anos e meio. Ou seja, a legislação incentiva a prática do grande crime. Isso vale para crimes financeiros, como remessas de dinheiro para o exterior. Se a pessoa mandar para o exterior R$ 10 mil ou R$ 10 milhões a pena vai ser quase a mesma. E quem trafica grandes remessas para o exterior? Claro que é quem tem muito dinheiro. Então a legislação brasileira é uma grande hipocrisia na esfera penal, ela é frouxa. O grande paraíso fiscal está aqui no Brasil, porque não dá nada mesmo.
E como o senhor se sente com relação a isso?
É uma decepção. A grande maioria dos juízes está totalmente desgostosa. Acha que a justiça penal virou efetivamente uma justiça que atende prontamente os ricos, para beneficiá-los. E atende prontamente também os pobres, mas para deixá-los na cadeia. Eu que já tenho 30 anos de magistratura, sendo 24 na Justiça Federal, chego no fim da minha vida funcional com uma grande decepção. Tremendamente decepcionado.
Há o que fazer pra virar esse jogo?
Hoje existe um envolvimento muito grande, eu diria promíscuo, entre crime organizado e administração pública. Em todos os poderes existe. Se há o que fazer? Para consertar eu acredito numa instituição chamada juventude. Não essa que está aí agora, mas as novas, que ainda virão. Aí depende da educação, tem que pa
rtir de uma conscientização de que a sociedade tem força pra exigir dos governantes, exigir leis mais pesadas. Caso contrário não muda nada.
O senhor declarou ser contra a legalização das drogas. Por quê?
O problema maior não é a parte penal, da punição. O problema é de saúde pública. Com a liberação, o comércio de drogas será bem maior. Aí também aumenta o consumo.
Mas os governos gastam valores absurdos no combate. Em caso de legalização essa verba não poderia ser revertida para a saúde, por exemplo?
Se o mundo fizesse isso seria um negócio muito malfeito. A exemplo do Brasil, o mundo não tem estrutura para curar seus viciados. Se o Brasil quiser internar hoje 2% dos seus viciados não terá leitos suficiente. Acho que o grande negócio é o mundo se voltar para o combate às drogas, lá na origem. Normalmente o combate é feito no país de consumo, quando você tem que combater na fonte. Quem é que encharca o mundo de drogas, principalmente de cocaína, com a conivência do Brasil? É a Colômbia. E quem combate a cocaína lá? Só os Estados Unidos.
O senhor considera hipocrisia descriminalizar o usuário e condenar a produção de droga?
É uma grande hipocrisia efetivamente. É a lei da oferta e da procura. A legislação brasileira com relação a isso é toda uma grande hipocrisia. Ela confunde o usuário ocasional com o viciado, mistura os dois. Ela aplica prestação de serviços à comunidade por cinco meses nos dois casos. Essa medida é de bom tamanho para o viciado, desde que com tratamento médico. Mas aquele usuário ocasional, que usa a droga para ir numa festa, tem que receber medidas mais duras. Ele conscientemente sustenta o tráfico.
O sr. já pensou em se candidatar a um cargo político?
Já fui convidado por diversos partidos para qualquer cargo que eu quisesse, menos o de presidente. Mas eu penso que teria que sofrer uma adaptação bem grande. O conceito que se tem de honestidade, de cumprimento de dever, é bem diferente no mundo político. Não quero dizer que todos os políticos são sebosos, safados, mas uma grande parte é. Então, se eu fosse algum dia político, só seria por um mandato. Porque se eu não entro no esquema não sou reeleito.
Recentemente os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiram não aplicar a lei da Ficha Limpa para a última eleição. O que o senhor achou?
Acho bem discutível. Todos eles têm razão, tanto quem votou contra como quem votou a favor. As duas interpretações têm fundamentos. Pela minha formação, eu votaria pela aplicação da Ficha Limpa. Eu consideraria como peso a sociedade. A angústia da sociedade.
Este ano houve um corte na verba da PF, o que prejudicaria o policiamento das fronteiras. Como o senhor vê o controle de fronteiras do Brasil?
É péssimo. Temos cerca de 16.000 km de fronteira seca. Com passagem a quem vai e a quem vem de maneira descontrolada. Você não vê policiais nessa fronteira. Vamos pegar como exemplo o Estado de Mato Grosso do Sul. Temos uma delegacia da polícia federal lá em Corumbá. Aí você vai andar uma eternidade pela fronteira até encontrar outra lá em Ponta Porã. Depois só em Naviraí. Matematicamente se prova que a fronteira está despolicializada.
Isso no Mato Grosso do Sul, uma das portas do tráfico.
A fronteira mais complexa com relação ao tráfico de drogas e armas é a desse Estado. Não tem outra. O MS faz fronteira com dois países que são peças-chave nesse comércio: o Paraguai, que é o segundo produtor mundial de maconha e é um imenso corredor da cocaína; e a Bolívia, que é o terceiro produtor mundial de cocaína.
Com tantas ameaças, o senhor se sente prisioneiro?
Na realidade eu me sinto, porque ainda que ande com segurança não tenho aquela liberdade de frequentar qualquer ambiente. Eu fico mais em casa. Digamos que fico numa situação assim de preso no regime semi-aberto. Como é que eu vou à casa de um amigo com um monte de gente armada? As pessoas acham que é glamoroso, é status, mas na verdade é sempre um constrangimento.
Depois de tanto tempo de carreira, aos 62 anos, quando o senhor olha para trás acredita que valeu a pena ter perdido a liberdade?
Se eu contabilizar benefícios pessoais, não vale nada. O prejuízo foi imenso, incalculável. Só que juiz nenhum pode querer ser juiz pensando em benefícios pessoais. Ele já tem que entrar assumindo o risco de ter que passar pela privação. Mas, com relação ao benefício para a sociedade, compensou grandemente. Não me arrependo de nada e faria tudo de novo. Só que faria de maneira mais rigorosa ainda.
Fonte: Revista Trip