Artigo de Isaac Duarte de Barros Junior *
Meu avô paterno era um gaúcho de pelo duro do século dezenove, que falava fluentemente a língua guarani e raramente comentava a respeito da etnia de minha avó. Com essa mulher indígena, ele se casou na alvorada do século vinte, na cidade paraguaia de Encarnacion. O “capitão” Fulgencio, dos chistes do Dr. José Alberto Vasconcelos, natural de São Borja, migrou bem jovem e em Mato Grosso morou em Ponta Porã. Naquele alvorecer do desbravamento, seu pai, um caudilho chamado Aparício Medeiros de Barros, se tornaria estancieiro e primeiro proprietário da fazenda “pacury”, vendida para a Empresa Mate Larangeira. O velho “Fulú”, como era conhecido na fronteira, gostava de jogar um carteado, certa vez me garantindo, sesteando numa rede amarrada entre duas árvores frondosas, que as almas dos índios guaranis, gente da minha avó, nos dias de vento frio suspiravam tristes, em forma de lamentos nos ervais.
No ano em que nasci essa avó faleceu. Ficando viúvo, Don “Fulú” mudou-se para Dourados, para ficar mais perto do meu pai, casado com uma das filhas do fazendeiro Izidro Pedroso. Sem papas na língua, esse gaúcho aventureiro, praguejava comentando a carreira política do tio, advogado Augusto Borges de Medeiros, cidadão que governou o estado do Rio Grande do Sul. Lembrando desse parente, ele irritava-se, culpando-o por haver arrumado inimizades para toda a família nas serranias de Caçapava do Sul. Situação insustentável, que os obrigou a deixarem aqueles pagos. Morando aqui, casou-se com a viúva Ádila Stein Pedroso, já falecida. Entretanto, esse relacionamento com a filha de Lúcio Stein, durou pouco. Gostando de lidar com gado de corte, “Fulú” virou comerciante, abrindo açougues em Guia Lopes da Laguna. Casando-se por lá pela terceira vez, novamente foi pai. Ademar de Barros, o único de seus filhos varões ainda vivos, agora preside a Câmara de Vereadores daquela progressista cidade no sudoeste.
Todavia, Fulgencio do Canto Barros, gostava de pelear. O taura, contava que morando no Paraguai em 1932, belicoso quis participar da guerra do Cháco, acompanhando seu cunhado o tenente Valeriano Duarte. Porém, as autoridades paraguaias descobriram que “Fulú” era brasileiro e o expulsaram do exército guarani. Seu azar foi enfurecer-se, assistindo o cunhado morrer, ferido numa batalha. Nessa ocasião, gritou reclamando do péssimo socorro prestado pela cruz vermelha, xingando os enfermeiros paraguaios, em claríssimo português. Todavia, seu desabafo gauchesco na trincheira, foi presenciado pela pessoa de um coronel e uma corte marcial de militares o deportou, mesmo sendo casado com uma paraguaia e pai de um casal, filhos nascidos naquele país.
Descobri, pesquisando o passado, que o boêmio “Fulú” estava entre aqueles primeiros jovens motoristas habilitados, recebedores da carteira profissional em Ponta Porã. Naqueles dias, obtendo essa licença de motorista, o ainda rapazola ganhou um Ford bigode como presente do pai, fazendeiro abastado. Certo dia, acurado médico fluminense de renome, amigo antigo de Aparício Medeiros, residente no Rio de Janeiro, trouxe consigo a filha com problemas de saúde no frágil pulmão, para tomar ares do campo.
Fulgencio Barros, desmanchando-se em gentilezas, encarregou-se de transportá-la nos passeios, ficando horas sozinho na companhia da donzela carioca. Resultado, a pequena adolescente ficou grávida e meu avô fugiu para o Paraguai, de onde retornou casado. Mas dessa gravidez, nasceu minha tia Sophia, mãe do ex-deputado estadual Cleomenes Nunes da Cunha. Chegando a idade avançada, com 96 anos bem vividos, “Fulú” exibia uma memória prodigiosa. Levantava cedo e tomava chimarrão n’ água fervendo. Seu cardápio predileto foi saborear costela assada, espetada em vara de madeira. E em nosso ultimo encontro, sussurrou rindo: meu coração é brasileiro, mas minha alma é guarani…
- Isaac Duarte de Barros Junior é advogado criminalista e jornalista.