17/10/2011 14h03 – Atualizado em 17/10/2011 14h03
Por Pedro Kemp
Muitas vezes falamos da violência que acontece todos os dias nas ruas e praças de nossas cidades e que nos causa intranqüilidade e deixa as famílias inseguras ao imaginar que, amanhã ou depois, poderá ter um dos seus como mais uma vítima dessa triste realidade. São situações de assaltos à mão armada no comércio e nas residências, roubos no interior dos ônibus do transporte coletivo, estupro de alunas ao sair da escola, execuções a mando do crime organizado, crimes bárbaros cometidos para alimentar o tráfico de drogas. Ficamos indignados e assustados com tanta agressão à integridade física das pessoas. São casos em que a violência mostra sua face sem qualquer disfarce.
Poucas vezes falamos da violência camuflada, daquela que se esconde atrás de explicações e justificativas, que é de difícil percepção, não porque não signifique também uma agressão à pessoa, mas porque, em geral, estamos nos acostumando a ela. Aliás, talvez seja este o maior risco que a humanidade corre hoje, o de se acostumar com as violências cotidianas, o de considerar normal o que atenta contra a dignidade humana. Estou falando da fome, da miséria, da falta de assistência médica nos postos de saúde, dos preconceitos e discriminações, da falta de transparência nos programas habitacionais, da lentidão da reforma agrária, da exclusão das pessoas com deficiência, do assédio moral no trabalho e de tantas outras violências silenciosas.
No último dia 24 de agosto, três estudantes indígenas da etnia guarani-kaiowá, moradores da aldeia urbana Água Bonita de Campo Grande, foram proibidos pela direção de uma escola da rede municipal de falar sua língua materna, o guarani, nas dependências da unidade escolar. Segundo relataram, tiveram que assinar um livro-ata assumindo formalmente o compromisso, mesmo sem entender no momento o que exatamente o texto dizia. A justificativa da Prefeitura, via assessoria de imprensa, é que a restrição dizia respeito unicamente à questão disciplinar. A direção da escola alegou que os índios usavam a língua nativa para fazer piadas em relação aos outros alunos da turma sem serem compreendidos.
À primeira vista, um fato corriqueiro, sem muita importância, justificado por autoridades. Mas, a partir de uma reflexão feita com mais cuidado e atenção, podemos dizer que se trata de um caso de violência travestido de “medida disciplinar”. Mais uma violência perpetrada contra índios em nosso estado, já tão acostumado com essas histórias. Afinal, são tantos os casos de suicídios de índios, de crianças que morrem por desnutrição nas aldeias, adolescentes abusadas sexualmente, trabalhadores indígenas no corte da cana em situação análoga à escravidão, famílias guarani-kaiowá morando à beira da estrada impedidas do acesso às suas terras tradicionais, lideranças assassinadas sem que ninguém seja punido.
A verdade é que os índios em nosso estado são vítimas de grande preconceito, que tem se traduzido em discriminação de todo tipo, resultando em violências das mais sutis aos atos mais cruéis que já ceifaram muitas vidas. O certo é que são vistos como seres inferiores, incapazes, pessoas que atrapalham o desenvolvimento econômico e social da nossa região. É comum ouvirmos, “o que querem com a terra se não produzem como nós capitalistas?; como ousam falar de direitos se são tutelados?; por que não ficam quietos em suas aldeias?; que querem agora em nossas universidades?; que fazem em nossas escolas, falando ainda uma língua primitiva?” Talvez queiram dizer, “por que não se calam?; por que não nos deixam em paz?; por que não deixam de ser índios, tornando-se como uns de nós, civilizados?”
A proibição dos estudantes indígenas de falar o guarani não é uma questão menor. A partir dela precisamos nos questionar se acreditamos de fato numa sociedade verdadeiramente democrática, que reconhece e sabe conviver com as diferenças, que rejeita o etnocentrismo e combate todo o tipo de atitudes de arrogância e superioridade que facilmente conduzem a ações autoritárias.
A medida adotada pela escola, do ponto de vista da cidadania, constitui-se em grave violação dos direitos dos alunos indígenas e, na perspectiva da política da educação inclusiva, numa postura discriminatória de não-reconhecimento da diversidade cultural, característica de nosso país e de nosso estado, que deveria ser valorizada, respeitada e, até mesmo, incentivada pelas escolas.
Vale lembrar que o Brasil é um país pluriétnico e que o português não é a única língua falada pelos brasileiros. Segundo dados do IBGE, existem mais de 800 mil índios no território nacional, distribuídos em, pelo menos, 230 povos e que falam 180 línguas diferentes, colocando nosso país entre as nações de maior diversidade étnica e lingüística do mundo. Nossa Constituição Federal, no seu art. 231, assegura aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, entre outros direitos. Além do que, somos signatários do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que reza, no seu art. 27, que nos estados onde haja minorias étnicas ou lingüísticas, pessoas pertencentes a esses grupos não poderão ser privadas de usar sua própria língua.
Sendo assim, não podemos ficar indiferentes diante de situações como esta, pois como nos alerta o poeta, se nos tiram uma flor hoje e ficamos calados, amanhã virão destruir todo o jardim. Fica nossa indignação. Se quiserem aplicar disciplina, tão importante no contexto educacional, não o façam violando direitos. Afinal, os guarani-kaiowá não são estrangeiros entre nós. São brasileiros, nascidos aqui no Brasil, que falam uma das inúmeras línguas nativas que enriquecem nossa tão diversificada cultura e que ressoa nessas terras bem antes do importado português.
Talvez, o que nos falta nos dias atuais é falar mais a língua universalmente conhecida e que se não for mais praticada poderá até entrar em extinção, como a dos Guató (índios canoeiros do pantanal): a linguagem do amor e da fraternidade.
Pedro Kemp – Deputado Estadual (PT).