14/11/2011 14h29 – Atualizado em 14/11/2011 14h29
Por: Roberto Antonio Liebgott Fonte: Adital
Até aqui temos 10 meses de governo de Dilma Rousseff. Tempo suficiente para antevermos alguns caminhos pelos quais vai transitar esse bonde governado pela presidente. E ele seguiu, nos primeiros tempos, trilhos paralelos aos do ex-presidente Lula e das políticas que anteriormente balizaram as ações oficiais. Tamanha era a proximidade sugerida durante a campanha eleitoral que muitas vezes a imagem da então candidata se confundiu com a de Lula. E, definidas as eleições, houve quem acreditasse que uma mulher na presidência era prenúncio de uma nova sensibilidade para as causas humanas e sociais.
Depois desses primeiros meses, dos ajustes finos na engrenagem desse bonde, da definição da “equipe de apoio” e da concretização de alguns compromissos assumidos na campanha, já é possível verificar a continuidade e o aprofundamento do projeto desenvolvimentista, sustentado especialmente em obras de grande porte e em empreendimentos vultosos.
Pode-se dizer que o projeto desenvolvimentista da presidente avança, inclusive, para além das fronteiras nacionais. Não foi à toa que recentemente o governo Dilma emitiu nota, através do Itamaraty, defendendo a construção de uma estrada na Bolívia. Contrariando interesses dos povos indígenas daquele país, que marcham e lutam contra a obra e não aceitam que esta rasgue as suas terras. Apesar de todos os protestos o governo brasileiro saiu em defesa da estrada a ser construída na Bolívia e que terá origem em Porto Velho – Brasil. Seria uma manifestação de interesse altruísta ao projeto de desenvolvimento de boliviano? Não exatamente! A explicação é bem mais rentável do que parece: a estrada, orçada em US$ 415 milhões, é financiada com recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e vem sendo construída por uma das maiores empreiteiras privadas com sede no Brasil, a OAS.
Com os olhos voltados para a bandeira do desenvolvimentismo, o governo federal canaliza e concentra todos os esforços e recursos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não permitindo a execução completa dos orçamentos de programas sociais – reforma agrária, quilombola, indigenista, segurança alimentar, da criança – sendo a maior parte dos recursos contingenciados e utilizados para aumentar o superávit primário. Fartura de recursos para investimentos, para empreendimentos, para financiamento de grandes projetos, penúria para a maioria da população, para quem se destinam precárias ações de assistência em saúde, educação, segurança e algumas políticas compensatórias destinadas através de bolsas. A última recentemente criada foi a “Bolsa Verde” que faz parte do programa “Brasil Sem Miséria”. Um programa que prevê o pagamento trimestral para famílias que desenvolvam atividades de conservação dos ecossistemas da Amazônia. Aliás, uma nota do próprio governo, divulgando a novidade, declara que no estado do Amazonas 18,6% das famílias vive com menos de R$ 70,00 ao mês. Esse é um dado que demonstra a urgência de se estabelecer não um pacote de medidas assistenciais, mas uma eficaz política de inclusão social.
É o bonde da Dilma em movimento! E a política da presidente se assemelha também a um trator sem freio, que segue em frente, a qualquer custo, revolvendo a terra, removendo empecilhos, aniquilando o meio ambiente. Não por acaso o termo “tratorar” se aplica a quem costuma seguir arrastando o que encontra pela frente, sem tempo ou disposição para a escuta, a discussão e o profícuo debate democrático. No campo político, são muitas as investidas contra a legislação ambiental, contra os direitos indígenas e quilombolas, sem nenhum tipo de reação, por parte do governo Dilma, para defender estas minorias.
Ao invés de o governo federal assumir responsabilidades com essas populações e com os seus direitos territoriais, ocorre exatamente o oposto, ou seja, as notícias dão conta de que diversas audiências foram concedidas pelo atual ministro da Justiça a políticos interessados em rever procedimentos demarcatórios de terras indígenas e também de quilombolas. De acordo com o que a imprensa relata, todos saem do gabinete ministerial sorridentes, com a promessa de criação de comissões para estudar demarcações, rever procedimentos, relatórios e laudos elaborados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Incra. Nesta direção – e selando um compromisso com determinados setores sociais – o ministro da Justiça, a Advocacia Geral da União e outras instâncias do governo assinaram portaria para estudar formas de garantir a participação de estados e municípios nos procedimentos demarcatórios.
Para os povos indígenas não restou nem a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) – esse tão alardeado espaço de “diálogo” sobre a política indigenista, criado por Lula. Depois de serem “tratorados” tantas vezes, os representantes na CNPI se retiraram da última reunião e informaram que só retomam o diálogo se forem recebidos pela presidente e seus ministros. Até agora a presidente não se deu nem ao trabalho de responder.
O “trator da Dilma” também anda sem freio para os lados da Amazônia. A presidente fez uso de Medida Provisória para reduzir limites de parques ambientais, determinou a liberação de licença para desmatamento na região onde pretendem construir os canais da usina de Belo Monte e ao cobiçado complexo hidroelétrico do Rio Tapajós, bem como fez vista grossa à aprovação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados. Um começo e tanto para apenas dez meses de governo! Podemos supor quantas clareiras serão abertas e quantas florestas tombarão para deixar passar o bonde desenvolvimentista.
Enquanto isso, as comunidades indígenas sofrem os impactos da falta de uma política séria e comprometida com a garantia de seus direitos constitucionais:
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No campo da saúde, um verdadeiro caos está instalado. Ao que parece, nem a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e nem a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) funcionam, e os índios desconfiam que a escolha de uma única organização a ser responsável pelo atendimento às comunidades em todo o país, parece ser o prenúncio da tão contestada política de terceirização e dos benefícios a privilegiados dirigentes de organizações (Osips ou ONGs). Os povos do Vale do Javari, no Amazonas, sofrem com a falta de atendimento, de medicamentos, de profissionais em saúde, o que tem comprometido a vida e o futuro de dezenas de povos na região. De acordo com dados oficiais dos órgãos de assistência há no Vale do Javari um decréscimo populacional. Para tentar reverter a situação, os povos iniciaram uma campanha, buscando o apoio da sociedade, numa espécie de pedido de socorro em função da gravidade dos problemas;
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A paralisação dos procedimentos demarcatórios parece ter virado política de governo. Nenhuma homologação de terra indígena foi registrada ao longo deste ano. Em Mato Grosso do Sul, nem a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta fez com que a Funai cumprisse com suas obrigações e apresentasse os resultados dos grupos de trabalho que analisam as terras Guarani-Kaiowá. O povo Xetá, no Paraná (PR), que quase chegou à extinção, também aguarda há anos a publicação do relatório de suas terras. No Rio Grande do Sul (RS), existem acampamentos indígenas instalados na beira de BRs há mais de 30 anos, com crianças indígenas morrendo por desnutrição. Falta-lhes a terra para sua sobrevivência. Ao que parece a política é de não demarcar mais nenhuma terra indígena, por isso a Funai demora tanto para proceder à análise dos relatórios circunstanciados e quando os analisa busca desqualificar o direito à demarcação de terras como sendo de ocupação tradicional;
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A violência se alastra em várias regiões do país e, em especial, no Mato Grosso do Sul. Conforme dados reunidos pelo Cimi, dos 38 assassinatos de indígenas registrados em 2011 no Brasil, 27 ocorreram naquele Estado (o que corresponde a 71% dos casos). Continuam ocorrendo, de modo sistemático, atentados contra acampamentos dos Guarani-Kaiowá e os agressores fazem uso, inclusive, de munição exclusiva das forças policiais. Os Awá Guajá, povo recentemente contatado no Maranhão, sofrem com ataques de madeireiros ao seu território e a membros de sua comunidade. Quando estes fatos são denunciados e se solicita a intervenção da Funai, esta informa não ter recursos nem para o combustível dos seus veículos; em função disso, sequer vão para estas áreas, averiguar a situação;
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Na região Nordeste, as comunidades indígenas sofrem com os impactos das obras da transposição do rio São Francisco. Mesmo quando se encerraram etapas dessa construção, ficam os problemas sociais e econômicos para aqueles que ali vivem. E a água para todos, como se prenunciava, não chegou;
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No Pará e, mais precisamente, em Altamira, a população local sofre as consequências sociais e econômicas em função da instalação do canteiro de obras da hidroelétrica de Belo Monte. No município os hospitais encontram-se lotados, o trânsito está caótico e há uma grande circulação de pessoas vindas de outras regiões ou que estão sendo removidas de suas habitações. Pequenos produtores protestam por serem praticamente expulsos de suas terras pelo consórcio Norte Energia, sendo que as compensações pelas desapropriações são irrisórias. Há relatos, inclusive, de um agricultor que teve sua casa incendiada.
Todo este contexto de ataques ao meio ambiente e de desmantelamento dos direitos agrada muito aos invasores de terras indígenas e a setores da política e da economia que pretendem: aprovar o projeto de lei que possibilitaria exploração mineral em terras indígenas; o “engessamento” de territórios com propostas, como o sequestro de carbono, a revisão de procedimentos demarcatórios já concluídos como os das terras Marawatsédé e Raposa Serra do Sol.
É o “trator sem freio” que segue esmagando vidas, destinos, projetos de futuro, territórios sagrados, tudo em nome de um desenvolvimento que não tolera diferenças, que tudo destrói. É o bonde da Dilma que passa acelerado, e nele só têm acento uns poucos privilegiados!
[Publicado no Jornal Porantim, setembro de 2011].
Roberto Antonio Liebgott é Licenciado em Filosofia, graduando em Direito pela PUCRs e missionário leigo atuando no Rio Grande do Sul, no Cimi Regional Sul – Equipe Porto Alegre