28/03/2013 21h29 – Atualizado em 28/03/2013 21h29
Por Frei Betto
Desde o surgimento da agricultura, quando o ser humano já não dependia da fase coletora e extrativa, tenta-se domesticar a natureza, impor-lhe limites, desviar o seu curso, exigir que ela siga, não suas leis intrínsecas, e sim a nossa lógica voltada ao lucro.
Assim, represamos rios, reduzimos o ímpeto das marés, quebramos a escuridão da noite, logramos fazer voar o que é mais pesado do que ar.
A razão moderna desencantou o mundo. E a primeira vítima foi o milagre que a ciência tenta expulsar do mundo e da mente humana.
A crença no milagre revela certa noção de Deus. Seria ele como um encanador que, tendo cometido erros em sua obra, a todo momento precisa correr aqui e ali para corrigir defeitos imprevistos? Ele livra da doença os filhos preferidos e não os preteridos? Fica atento a quem mais emite súplicas e premia a insistência com o milagre?
A razão moderna considera que só a ignorância enxerga milagres na ordem natural das coisas. Milagre é quando se desconhecem as leis da natureza, assim como é mágica o que provoca e esconde o truque.
O que hoje é tido como milagre será desvendado amanhã pela ciência, como faz o Fantástico em suas reportagens sobre a origem ordinária de fatos extraordinários?
Há teólogos que restringem a ação divina ao ato da Criação. Deus, ao criar, teria dotado a natureza de leis que, como o mecanismo do relógio, funcionam sem que o relojoeiro precise interferir. Se ocorrem imperfeições na Criação não é culpa de Deus. Há que buscar as causas na ação humana sobre a natureza e na nossa ignorância, que percebe como defeito o que para Deus seria mero e previsível efeito.
As Igrejas demonstram uma posição ambígua diante do milagre. Umas admitem a onipotência divina, o poder de Deus em operar mudanças substanciais no rumo natural das coisas e, ao mesmo tempo, miram com ceticismo qualquer evento que, por seu caráter extraordinário, é tido como milagre.
As Igrejas neopentecostais emulam a fé dos fiéis através de sucessivos milagres, em especial os que restabelecem a saúde. Já as Igrejas históricas suspeitam da profusão de milagres. A ponto de o Vaticano, nos processos de canonização, nomear um “advogado do diabo” incumbido de desmoralizar fenômenos nos quais a fé identifica origem miraculosa.
Muitos procuram em Deus a capacidade de operar milagres. Um Deus-mágico, capaz de tirar, de sua onipotente cartola, todo tipo de curas e bênçãos. Um Deus disposto, a todo momento, a contrariar e mesmo subverter as leis da natureza que ele mesmo criou. Um Deus criado à nossa imagem e semelhança…
O que fez Moisés, naquele mundo politeísta, para convencer o faraó de que Javé era um Deus especial, diferente dos demais? Apresentou-lhe uma série de milagres. E ao se convencer de que o faraó se mantinha obstinadamente apegado a seus deuses egípcios, então recorreu às sucessivas pragas.
O Deus-espetáculo é tão paradoxal quanto o Deus-utilitário. Enquanto no dólar usamericano está impressa a inscrição “In God we trust” (Nós confiamos em Deus), os soldados nazistas traziam inscrito na fivela do cinto: “Gott mit uns!” (Deus está conosco).
E o Deus de Jesus, está com quem? Onde ele fica em tudo isso? Jesus agia com discrição, pedia aos discípulos para não fazerem alarde quanto à identidade dele, e ao curar não atribuía o mérito a si, e sim ao fiel: “A tua fé te salvou”.
O verdadeiro milagre de Deus é a presença de Jesus entre nós. Presença nada espetacular (nasce numa estrebaria e morre assassinado na cruz) e incômoda (entra em choque com as autoridades religiosas e políticas). Não era a ordem da natureza que lhe interessava mudar e sim o coração humano, para impregná-lo de amor, compaixão e justiça.
Desconfio da fé que necessita da muleta dos milagres para se sustentar. É a fé-bilhete de loteria: adquiro-a na expectativa de ser sorteado. Em nada mudo minha atitude. Fico à espera de que Deus mude a dele…
É frequente encontrar quem tenha fé em Jesus. O raro é se deparar com quem tenha a fé de Jesus, que o levou a se posicionar em defesa dos oprimidos e excluídos em nome de um Deus amoroso e misericordioso.
A vida humana é, sem dúvida, o maior de todos os milagres. Mas ele não nos causa impacto. Não cremos nele. Tanto que somos indiferentes a tantas vidas ceifadas precocemente pela miséria e a violência.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e espiritualidade” (Vozes), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.