27/10/2013 10h00 – Atualizado em 27/10/2013 10h00
Por: Luciano Martins Costa
Os principais jornais brasileiros trazem nas edições de quarta-feira (23/10) um relato chocante do ritual de violência que levou à morte o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, no dia 14 de julho, numa Unidade de Polícia Pacificadora da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. A investigação só foi possível porque um policial que não compactuava com o crime se sentiu ameaçado por seus colegas de farda e decidiu falar. Os detalhes são aterradores, e mostram que as políticas públicas precisam de muito mais do que belas siglas e boas intenções para produzir um Brasil melhor.
Amarildo foi detido num bar e encaminhado para a Unidade de Polícia de Proximidade, uma das peças da estratégia de ocupação das favelas pelas instituições do Estado. Dali, mesmo sob protestos de sua mulher e amigos, foi encaminhado para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora. Isolado num contêiner que serve de detenção provisória, ele passou a ser espancado e torturado por quatro policiais militares, entre eles um tenente.
Sofreu choques elétricos, foi asfixiado com saco plástico e afogado em um balde com água coletada do aparelho de ar condicionado. Seus gritos eram ouvidos por outros policiais que foram confinados em outros contêineres que formam o conjunto de salas da unidade. Alguns deles, entre os quais quatro mulheres, entraram em pânico e foram impedidos de sair.
O comandante da unidade, major Édson dos Santos, acompanhava os fatos de sua sala. Ele havia colocado doze militares cercando aquela parte da unidade, para evitar a aproximação de moradores e outros agentes, enquanto seus subordinados de confiança torturavam a vítima até a morte.
São 25 os acusados, e apenas quatro integrantes da unidade que se encontravam no local no momento do crime ficaram fora do inquérito. Eles pediram que seus colegas parassem a tortura, mas foram ridicularizados e depois ameaçados pelos policiais leais ao comandante. Nos depoimentos que prestaram, fica claro, segundo o Globo, que ali havia se instalado uma espécie de tribunal particular, semelhante aos que tiranizavam a comunidade no tempo em que a região era dominada por traficantes.
Essa rotina só foi quebrada porque a imprensa se viu obrigada a cobrar uma explicação para o desaparecimento do pedreiro.
Cadê Amarildo?
Essa pergunta foi gritada durante manifestações pelo Brasil afora, ganhou as redes sociais e exigiu que o governo do Rio se comprometesse a dar uma resposta. Mas o penoso processo de apuração revelou que o aparato policial está contaminado por um espírito de corpo que não se sintoniza com os interesses da sociedade.
O caso do pedreiro Amarildo é apenas mais um numa rotina que se repete por todo o país, nas instituições que ainda guardam resquícios da ideologia da violência do Estado contra o indivíduo desprovido de poder.
A leitura da reportagem do Globo, a mais completa, deveria ser parte obrigatória do currículo das academias de polícia de todo o país: o relato revela como o poder arbitrário transferido para indivíduos desqualificados distorce o significado e a natureza do Estado. (Pode ser acessada em serviços de clipping ainda autorizados a reproduzir conteúdos do jornal – ver aqui).
Não é boa prática analisar a personalidade do major Édson dos Santos e seus companheiros de crime a partir de uma notícia de jornal, mas os detalhes do caso induzem à convicção de que há algo de muito doentio no sistema da segurança pública, e não apenas no Rio.
Quando se observa as características da violência oficial no Brasil, fica evidente que o aparato policial se tornou agente de um preconceito institucional contra os mais pobres, principalmente negros e pardos (ver “O genocídio dissimulado”), conforme revelado na semana passada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Amarildo é um ícone: apanhado em um bar onde tinha muitos amigos e conhecidos, foi levado para o interrogatório violento sob uma acusação não definida, embora testemunhas tenham afirmado que se tratava de um trabalhador. A presunção de culpa estava provavelmente estampada na cor de sua pele, na constituição de seus cabelos.
Alguns dos policiais que participaram de seu assassinato são negros e pardos, o que insere um elemento de complexidade no problema: o poder branqueia?
Os pesquisadores que se debruçarem sobre o caso certamente vão tropeçar nas célebres reflexões de Hanna Arendt sobre a banalidade do mal. Mas é preciso ir além da teoria. Assim como soube manter em pauta o caso específico do pedreiro Amarildo, a imprensa precisa levantar a bandeira da verdadeira democratização do Brasil.