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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A Segunda Guerra Fria

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06/03/2014 13h41 – Atualizado em 06/03/2014 13h41

Fonte: Por André Barrocal – Carta Capital

O brasileiro que se desligou do mundo e caiu na folia durante o Carnaval tem motivos para um certo déjà vu ao voltar à realidade nesta quarta-feira de Cinzas. Em um lugar de nome esquisito e bem longe do Brasil, Estados Unidos e Rússia travam uma batalha diplomática que corre o risco de descambar para as armas. Aliados a forças locais distintas de um país em ebulição, Moscou e Washington lutam para que o poder caia nas mãos de um governo alinhado. E parece não haver meio termo: ou se está afinado com um lado ou com o outro. A Guerra Fria ressuscitou?

A crise na Ucrânia, aguçada com a queda do presidente pró-Rússia Viktor Yanukovich em 22 de fevereiro, tem muitos dos ingredientes da disputa “capitalistas x comunistas” que rachou o globo após a II Guerra Mundial. No sábado 1°, o parlamento russo autorizou o presidente Vladimir Putin a enviar tropas à Ucrânia para defender instalações militares e cidadãos russos naquele país, cuja parte leste tem forte identidade com Moscou. Na terça-feira 4, Putin chamou de “golpe de Estado” a queda de Yanukovich e admitiu usar a autorização parlamentar. No mesmo dia, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, foi à Ucrânia manifestar o apoio de Washington ao governo de transição e acenar com 1 bilhão de dólares de ajuda.

Estes lances encaixam-se no que se poderia chamar de uma “segunda guerra fria”. À diferença do conflito original do século XX, porém, não se alimenta de ideologia, mas de interesses estratégicos dos EUA. O fenômeno foi descrito no livro “A Segunda Guerra Fria”, lançado no ano passado pelo cientista político, historiador e professor aposentado de política exterior do Brasil Luiz Alberto Moniz Bandeira.

Desde os anos 90, diz o livro, os EUA dão importância crescente à Eurásia, região onde está a Ucrânia. Em 1994, o Departamento de Energia norte-americano identificou o Mar Cáspio, próximo da Ucrânia, como uma das maiores fontes de petróleo do globo. Uma baita descoberta para quem não sobrevive sem petróleo importado. E mais ainda porque a principal fonte conhecida, o Golfo Pérsico, é um caldeirão de antiamericanismo islâmico. Dali em diante, diz Moniz Bandeira, a prioridade geopolítica dos EUA consistiu em atrair os governos de países da região do Cáucaso, alguns dos quais pertenciam à ex-URSS. Washington fez isso inclusive mediante o envolvimento militar e uma política de regime change, ou seja, desestabilizando governos eleitos.

Na década passada, houve uma leva de vitoriosas “revoluções coloridas” contra regimes na região do Cáucaso: a Rosa na Georgia (2003), a Lilás no Quirquistão (2005) e a Laranja na Ucrânia (2004/2005). As três, diz Moniz Bandeira, foram incentivadas pelos EUA com um modus operandi batizado de “guerra fria revolucionária”: ONGs defensoras dos valores norte-americanos instigaram as populações locais contra os governos e as estimularam a ir às ruas, tudo descrito pela mídia internacional como revoltas espontâneas e democráticas.

O que acontece agora na Ucrânia, diz Moniz Bandeira, é uma reedição da “Revolução Laranja” de dez anos atrás. O problema – não só no caso da Ucrânia como nas demais revoluções coloridas – é que as turbulências ocorrem muito perto das fronteiras da Rússia. Um país que, sob Putin, superou a crise econômica decorrente do colapso da URSS e voltou a pensar-se como superpotência.

A seguir, o leitor confere os principais trechos da entrevista concedida por e-mail por Moniz Bandeira, que mora na Alemanha.

CartaCapital: Os EUA estão por trás das turbulências na Ucrânia?

Moniz Bandeira: Essa participação na subversão dos regimes na Eurásia é comprovadamente antiga. Na edição de 24 de novembro de 2003, o Wall Street Journal atribuiu o movimento contra o regime na Georgia a operações de um grande número de “organizações não-governamentais (…) apoiadas por fundações americanas e por outras fundações ocidentais”. E não pode haver maior evidência agora do que a participação aberta de dois senadores americanos – John McCain (Partido Republicano) e Christopher Murphy (Partido Democrata) – como líderes nas manifestações em Kiev. O economista Paul Craig Roberts, que foi secretário assistente do Tesouro no governo Reagan (1981-1989), escreveu que “a Ucrânia ou a parte ocidental do país está cheia de ONGs mantidas por Washington cujo objetivo é entregar a Ucrânia às garras da União Europeia, para que os bancos da União Europeia e dos Estados Unidos possam saquear o país como saquearam, por exemplo, a Letônia; e simultaneamente enfraquecer a Rússia, roubando-lhe uma parte tradicional e convertendo esta área em área reservada para bases militares de Estados Unidos-OTAN”.

CC: Que interesses norte-americanos o governo deposto da Ucrânia ameaçaria? Que evidências disso o sr. apontaria?

MB: Não se trata de “ameaça”. Nenhum país, evidentemente, ameaça os EUA. O problema é que o governo da Ucrânia não atende e não se submete aos interesses econômicos, geopolíticos e estratégicos de Washington. O presidente Viktor Yanukovych recusou-se a aderir à União Europeia e tendia a incorporar-se à União Econômica Eurasiana, cujo tratado o presidente Putin, como um grande estadista, está a negociar com as antigas repúblicas soviéticas. Esse tratado permitirá à Rússia conquistar dimensão estratégica e geopolítica de igual dimensão à da extinta União Soviética e voltar a constituir outro polo de poder internacional. O problema é a rivalidade dos EUA com a Rússia. A questão não é ideológica. É geoestratégica.

CC: Diria que a crise na Ucrânia é um prolongamento da Revolução Laranja?

MB: Claro que é uma nova Revolução Laranja. E não terminou. A Ucrânia está na órbita de gravitação da Rússia. E o governo que substitua o de Yushchenko não terá condições de resistir à sua vis attractiva [força atrativa], principalmente porque os EUA e a União Européia não têm condições de bancar financeiramente os problemas da Ucrânia e ainda por cima pagar a conta do gás que o país recebe da Rússia, com a qual tem enorme débito. Yushchenko era a favor do Ocidente quando assumiu a presidência da Ucrânia, porém, tal como seu antecessor, Leonid Kuchma, que solicitara adesão à OTAN em 2002, teve de mudar sua posição, diante da realidade geopolítica. A queda de Yushchenko seria certa se ele consumasse a adesão à OTAN. A Rússia não vai admitir a integração da Ucrânia na União Europeia. Ela possui uma base naval em Sebastobol e mais um porto em Odessa desde o reinado de Catarina, a Grande (1762 e 1796). A frota russa, baseada na península da Crimeia, controla o Mar Negro e as comunicações de importantes zonas energéticas (de reservas de gás e petróleo) através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos com o Mar Mediterrâneo. A Criméia pertenceu à Rússia até 1954, e o povo em Kiev, com a queda de Yushchenko, está a demandar a secessão. A Rússia, decerto, não apoiará, abertamente, o separatismo. Porém, milhares de pessoas já estão nas ruas de Sebastopol a clamar “Rússia, Rússia, Rússia” com a bandeira russa e a gritar “Não nos renderemos a esse fascistas”. A Crimeia tem cerca de 2 milhões de habitantes etnicamente russos, que não se submeterão ao governo dos fascistas em Kiev, apoiado pelo Ocidente. Em Simferopol, capital da Crimeia, com cerca de 350 mil habitantes, já estão sendo organizadas milícias para resistir a qualquer força de Kiev.

CC: O sr. parece identificar um padrão de intervenção não-violenta por parte dos EUA no pós-guerra fria. Um padrão a combinar a ação de ONGs e de líderes oposicionistas financiados por Washington com propaganda midiática. Diria que esta combinação está presente hoje na Ucrânia?

MB: Não há nenhum padrão de intervenção não-violenta dos EUA no pós-Guerra Fria. Os EUA intervém militarmente, de forma unilateral ou sob o manto da OTAN, quando podem. Intervieram na Líbia, mas não tiveram condições de fazê-lo na Síria, devido à oposição da Rússia e da China, embora continuem a financiar os rebeldes – na realidade, terroristas de Al Qa’ida e organizações similares. A guerra fria, portanto, continua, em uma etapa histórica superior, como demonstram os acontecimentos na Ucrânia, na Síria e nos demais países do Oriente Médio. Os EUA não deixaram de perceber a Rússia como seu principal adversário. De fato, a Rússia não perdeu, militarmente, nenhuma guerra. O que lá ocorreu foi a implosão de um regime socialista autárquico, inserido em uma economia internacional de mercado capitalista, da qual dependia e não podia desprender-se. Como sucessora jurídica da URSS, a Rússia herdou todo o seu potencial militar: cerca de 1.800 ogivas nucleares estratégicas operacionais e reservas de 2.700 ogivas, contra 1.950 ogivas operacionais e 2.500 ogivas de reserva dos EUA. O poderio militar das duas potências era equivalente. Após a dura crise econômica e política que atravessou nos anos 1990, a Rússia recuperou-se economicamente sob o governo Putin. E outra guerra fria, assim, recomeçou, uma vez que os EUA se empenham em implantar o full spectrum dominance [domínio de espectro total]. Na Ucrânia, um dos teatros onde as ONGs ocidentais impulsaram a cold revolutionary war em 2004-2005, a guerra fria reacendeu em 2013, uma vez que o governo recuou nas negociações para incorporar o país à União Europeia, o que podia abrir as portas para o estacionamento de tropas da OTAN dentro do seu território, conforme os EUA pretendem.

CC: Quais as ONGs vinculadas a Washington que mais se destacam na desestabilização de governos não-alinhados com os EUA?

MB: Essas ONGs, que promovem a política de export of democracy [exportação de democracia], são muito variadas, assumem nomes diferentes, embora os patrocinadores sejam virtualmente os mesmos: National Endowment for Democracy (NED), CIA e entidades civis, entre as quais Freedom House, a USAID [United States Agency for Cooperation International], o Open Society Institute (renomeado Open Society Foundations em 2011) do megainvestidor George Soros. Estas e outras organizações não-governamentais são uma fachada para promover mudança de governo sem que pareça golpe de Estado. Na Ucrânia, operam ONGs financiadas pela União Europeia.

CC: A crise na Ucrânia teria o mesmo peso e a mesma importância sem a cobertura dada pelas mídias locais e pela mídia mundial? Por quê?

MB: A Ucrânia é um país econômica e financeiramente muito debilitado. Seu governo, por diversos fatores e em distintas circunstâncias, cometeu muitos erros. E Washington trata de aproveitar as forças domésticas de oposição para fazer avançar seus interesses econômicos e geoestratégicos, através de ONGs financiadas pela NED, USAID, CIA e outras instituições públicas e privadas. Elas representam a mão invisível Washington nessas crises. Consciente ou inconscientemente, a mídia internacional serve como instrumento de psychological warfare [guerra psicológica], ao repetir e reproduzir como se tudo fossem demonstrações de massas e revoltas espontâneas. Isso vale particularmente para a BBC, a CNN e a Fox News. O fato é que o governo Obama continua a implementar uma estratégia para consolidar o full spectrum dominance estabelecido desde o governo George H. W. Bush. No atual contexto, isto significa que não interessa a Washington que a Ucrânia integre a União Econômica Eurasiana promovida pela Rússia.

CC: É possível para governos de países como a Ucrânia resistir à ofensiva da “guerra fria revolucionária” patrocinada por Washington? Por quê?

MB: Tudo depende das circunstâncias. É difícil prever. Apesar da decadência, os EUA são e serão uma superpotência por muitas décadas, enquanto o dólar for a moeda de reserva internacional. Militarmente, sem dúvida, os EUA nunca seriam derrotados. Mas uma superpotência devedora, cuja dívida pública se iguala ou mesmo supera sua produção de bens e serviços, uma superpotência que depende das importações, inclusive de capitais de outros países, para financiar guerras, sem as quais sua indústria bélica e toda a cadeia produtiva de tecnologia podem quebrar, não poder sustentar indefinidamente um sistema assim. Um dia, certamente, entrará em colapso. Certamente não mais estarei vivo. Mas o Império Americano, como todos os impérios, perecerá.

CC: Que desfecho considera mais provável para a crise na Ucrânia?

MB: Grande parte da oposição na Ucrânia é composta por elementos notoriamente fascistas. Eles são muito bem armados, muito bem organizados militarmente em companhias, patrulham as ruas em grupos de combate de dez pessoas, com capacetes e armas, alguns usando capacetes da divisão SS Galicia [região no Oeste da Ucrânia], que lutou ao lado dos nazistas alemães contra os soviéticos entre 1943 e 1945. Eles pertencem ao partido Svoboda, chefiado por Oleg Tiagnibog, forte especialmente no leste da Galícia, reduto da extrema-direita. Os chamados “ativistas” e “democratas” que fomentaram as demonstrações pro-União Europeia pertencem, em larga medida, a comandos do Svoboda e de outras tendências neonazistas e não escondem suas tendências xenófobas, racistas, anti-semitas e contra a Rússia. E foram com eles que os senadores americanos John McCain e Christopher Murphy se misturaram nas demonstrações contra o governo Yanukovych, democraticamente eleito e derrubado por um golpe, sob os aplausos dos EUA e da União Europeia. É muito provável que tais grupos neonazistas intentem a captura do poder em Kiev. Porém será difícil submeter a Crimeia.

CC: A Rússia jogou tudo o que podia diplomática e politicamente na atual crise na Ucrânia?

MB: A Rússia não jogou todas as suas cartas. O presidente Putin, que se revela o maior estadista da atualidade, sabe muito bem como dispor e lançar as pedras no xadrez da política internacional. Formado na KGB e havendo servido durante muitos anos na Alemanha Oriental, principal teatro do conflito Leste-Oeste, conhece muito bem como funciona a guerra nas sombras. A Ucrânia continuará ainda como cenário da segunda guerra fria e certamente a Rússia não aceitará, passivamente, que se integre na União Europeia. Haverá negociações ou derramamento de sangue. Quem viver verá.

Membros das tropas russas montam guarda perto do navio da marinha ucraniana no porto da cidade ucraniana de Sevastopol

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