07/03/2014 11h12 – Atualizado em 07/03/2014 11h12
Semelhante a Alex, que morreu espancado pelo próprio pai, quando criança eu também não tinha “jeito de homem”; gostava de brincar com as meninas, gostava de cantar e dançar
Por Jean Wyllys – Carta Capital
Quem me acompanha por aqui sabe que não tenho, por hábito, tratar de minha vida privada nem de minha intimidade. Concentro-me em debater ideias e fatos, sobretudo os ligados ao meu trabalho ou ao meu consumo cultural. Mas hoje vou abrir uma exceção…
Talvez seja a proximidade do aniversário de 40 anos, talvez seja o acúmulo de sentimentos não processados devido ao trabalho árduo dos últimos três anos, mas a verdade é que ando à flor da pele…
Hoje tive uma crise de choro ao ouvir, vinda da lanchonete da esquina, a música “No dia em que eu saí de casa”. A letra descreve quase que em detalhes um episódio de minha vida (e, por isso mesmo, as lembranças de minha mãe foram tão inevitáveis quanto as lágrimas):
“No dia em que saí de casa, minha mãe me disse ‘filho, vem cá’; passou a mão em meus cabelos; olhou em meus olhos e começou falar: ‘por onde você for, eu sigo com meu pensamento sempre, onde estiver; em minhas orações, eu vou pedir a Deus que ilumine os passos seus’.
Eu sei que ela nunca compreendeu os meus motivos de sair de lá, mas ela sabe que, depois que cresce, o filho vira passarinho e quer voar. Eu bem queria continuar ali, mas o destino quis me contrariar… E o olhar de minha mãe na porta, eu deixei chorando a me abençoar! A minha mãe, naquele dia, me falou do mundo como ele é; parece que ela conhecia cada pedra que eu iria por o pé. E sempre ao lado do meu pai, da pequena cidade, ela jamais saiu… Ela me disse assim: ‘meu filho, vá com Deus que este mundo inteiro é seu!”.
Depois de ouvir essa música, ainda sentado ao computador para concluir uns textos, li a matéria de O Globo com a história completa do garotinho Alex, morto a pancadas pelo próprio pai para que “tomasse jeito de homem”. Alex, natural de Mossoró, RN, fora enviado, pela mãe, ao Rio de Janeiro para viver com o pai, desempregado e envolvido com o tráfico de drogas, porque ela, mãe de outros três filhos (também criados por terceiros), poderia perder a guarda de Alex por não enviá-lo à escola, já que não tinha meios para tal.
Olhei a foto do enterro de Alex e meu coração se apertou ao perceber que não havia quase ninguém lá… Sozinha, aquela semente indefesa esmagada violentamente por sua natural exuberância, não tinha ninguém por ela na despedida dessa vida que lhe foi tão injusta.
Meu coração se partiu e não pude controlar os soluços de choro. Por um instante, vi-me naquele caixão, sem futuro…
Semelhante a Alex, quando criança, eu também não tinha “jeito de homem”; gostava de brincar com as meninas, de roda; de desenhar no chão com palitos de fósforo riscados e pegava, escondido, as bonecas de plástico baratas de minhas primas; semelhante a Alex, eu gostava de cantar e dançar e essa minha diferença me tornava alvo de injúrias e insultos desde que me entendo por gente. Cresci sob apelidos grosseiros e arremedos feitos pelos de fora. Naquela miséria em que eu vivia na infância, trabalhando desde os dez anos de idade nas ruas, o meu “jeitinho” me fazia vulnerável… e eu sabia disso ou, ao menos, intuía; por isso, dediquei-me aos estudos e ao exercício da minha inteligência. Busquei ser um menino admirável na escola e na Igreja para que meus pais não tivessem desculpas para me bater por aquilo que eu não podia mudar em mim. Nem minha mãe amada nem meu pai que já se foi me espancaram por eu ser diferente, mas, ante os insultos e as injúrias de que eu era vítima, ambos me pressionavam com olhares e cobranças e meu pai, em particular, com um distanciamento.
Minha estratégia de sobrevivência deu certo, em casa e na escola. Transformei-me num adolescente inteligente e admirado. No movimento pastoral, aprendi a me levantar contra as injustiças (inclusive contra aquelas de que eu era vítima); aprendi o que era a homossexualidade e que havia outros iguais a mim, o que me levou a passar da vergonha para o orgulho do que era. Cursei, depois de um disputado vestibular, um dos mais cobiçados colégios técnicos da Bahia. E virei orgulho de meus pais, irmãos e de todos os meus familiares e vizinhos que me insultaram.
Tanto que, no dia em que saí de casa de vez, rumo a Salvador, os olhos de minha mãe amada diziam: “Meu filho, vá com Deus que esse mundo inteiro é seu”. E é!
Mas eu e outros poucos que escapamos dos destinos imperfeitos ainda somos exceções. A regra é ser expulso de casa ou fugir como meio de sobreviver; é descer ao inferno da exclusão social e da falta de oportunidades; ou ter o futuro abortado pela violência doméstica, como aconteceu com o pequeno Alex…
Hoje eu quis, do fundo de meu coração, ter encontrado Alex antes de sua morte violenta e trazê-lo para perto de mim; quis voltar o tempo e livrá-lo da miséria em Mossoró e das mãos de seu algoz; de chamá-lo de “filho”; olhar em seus olhos e dizer “Por onde você for, eu te seguirei com meu pensamento pra te proteger”; quis apresentá-lo à minha mãe para que ela dissesse, a ele, “seu pai era igual a você quando criança e hoje eu tenho muito orgulho dele”…
Não deu, Alex. O destino nos contrariou: não nos quis juntos. Mas, em minhas orações, eu vou pedir a Deus, se é que ele existe mesmo, que ilumine sua alma…
Jean Wyllys – jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.