19/04/2014 08h07 – Atualizado em 19/04/2014 08h07
Por Luis Roberto de Paula
O governo federal demonstra que o Estado continua a funcionar ora como incendiário – por exemplo, ao jogar na arena dos leões uma proposta de reformulação que mexe com o tema mais delicado da política indigenista, a demarcação de terras –, ora como bombeiro, por meio da intensificação da atuação da Polícia Federal quem interessa colocar mais lenha na fogueira das complexas situações conflituosas que envolvem povos indígenas e setores distintos da sociedade brasileira, incluindo órgãos públicos federais, estaduais e municipais?
Para muitos porta-vozes do autodenominado “setor produtivo agrícola”, que ultimamente passaram a se autoidentificar pelo codinome de guerra “ruralistas”, há um grande conluio em curso no Brasil, sob patrocínio de supostos interesses internacionais, para estimular a associação entre índios, ONGs e parte do governo federal (via a Fundação Nacional do Índio − Funai) com o claro intuito de desestabilizar o mais importante setor produtivo nacional, o agronegócio; a reboque dessa tragédia, impedir o desenvolvimento do país e, mais grave ainda, criar condições para colocar em xeque a soberania nacional.
No campo oposto, para muitas lideranças indígenas e seus parceiros, também haveria um grande conluio em curso no Brasil, sob patrocínio de interesses extrativistas internacionais, para estimular a associação entre ruralistas, militares, madeireiros, grileiros, pistoleiros, garimpeiros, políticos, parte do governo federal e populações locais não indígenas que atuariam para inviabilizar o modo de vida indígena tradicional, impedir a demarcação de suas terras e fazer regredir os direitos indígenas duramente conquistados e devidamente garantidos na Constituição Federal de 1988.
Diante dessa polarização ideológica crescente – manifesta de modo cíclico a partir da publicização de leituras notadamente críticas e muito pouco propositivas –, o que tem nos restado é torcer para que nenhum dos agentes envolvidos em tais situações melindrosas, por descuido ou intencionalidade, jogue (mais) gasolina nas fogueiras que ardem a céu e florestas abertos.
Exemplo de manifestação desse embate ideológico nos foi apresentado recentemente. No final de novembro de 2013, o Ministério da Justiça anunciou que reformularia os procedimentos demarcatórios de terras indígenas e, como de praxe, representantes de ambos os polos da contenda interétnica desqualificaram e rejeitaram na íntegra a minuta preliminarmente proposta. Para líderes ruralistas, trata-se de uma minuta que instaura definitivamente no Brasil uma “ditadura antropológica”. Para ONGs defensoras dos direitos indígenas, trata-se de uma inequívoca prova de submissão do atual governo federal aos interesses dos ruralistas.
De fato, o que a minuta apresenta em síntese é a recomposição representativa dos grupos de trabalho responsáveis pelos processos de identificação de terras indígenas e o aumento do número de etapas desses processos. Trata-se de proposta que aparentemente favorece as demandas dos ruralistas, já que burocratiza ainda mais os procedimentos de demarcação de terras indígenas. Entretanto, outra leitura é possível de ser feita, sobretudo se forem levadas em conta pelo menos três variáveis presentes nesse debate: a) a necessidade de atualizar o conceito de “terra indígena” que consta no Decreto n. 1.775/1996, que não contempla as novas categorizações de “terra indígena” surgidas nos últimos anos – por exemplo, Aldeia Maracanã (RJ) e Santuário dos Pajés (DF); b) a necessidade de regulamentar e delimitar de maneira precisa a função de outros entes governamentais nos procedimentos de identificação de terras, que já exercem poder de influência – e de boicote – considerável no atual modelo, mas são ocultos nos bastidores; c) o contexto político nacional e internacional desfavorável no que tange aos apoios e suportes para os povos indígenas.
Com esta leitura alternativa à bipolarização referida, seria possível supor que o atual governo, com a proposta da minuta, buscaria (o documento encontra-se em discussão) manter o processo demarcatório sob controle do Poder Executivo e, para tanto, precisaria contar com a boa vontade do movimento indígena e de suas entidades parceiras no sentido de aprimorá-lo, e não de rejeitá-lo. Não custa lembrar que o maior objetivo do setor ruralista organizado é conseguir levar a decisão de demarcação de terras indígenas para definição do Congresso Nacional (a famosa PEC 215).
O problema desse tipo de iniciativa governamental é que ela está orientada pela lógica do varejo, e agir assim no campo minado da política indigenista nacional é caminhar no sentido contrário ao da boa política pública, qual seja, a proposição de ações articuladas e orientadas para curto, médio e longo prazo, identificando as prioridades contidas nas diversas dimensões que a compõem, das quais a demarcação de terras é uma entre tantas outras. O atual governo federal demonstra que o Estado brasileiro continua a funcionar ora como incendiário – por exemplo, ao jogar na arena dos leões uma proposta de reformulação que mexe com o tema mais delicado da política indigenista, a demarcação de terras –, ora como bombeiro, por meio da intensificação da atuação da Polícia Federal e do Exército em conflitos interétnicos, algo sintomático dos tempos vividos.
Nada fácil atuar como bombeiro – e nada menos estratégico que posar de incendiário – em tempos de ininterrupta sucessão de tragédias e intensa divulgação de imagens e narrativas sobre os mais variados conflitos entre índios e brancos em curso no país. Já não lembramos com a nitidez merecida os atos de vandalismo ocorridos no final de 2013 na cidade de Humaitá (AM), desencadeados por cerca de 3 mil moradores locais não índios que incendiaram prédios, veículos e barcos de órgãos públicos federais voltados à assistência indígena. Os conflitos instaurados entre índios guarani-kaiowá e fazendeiros no Mato Grosso do Sul por conta da demarcação de terras indígenas parecem pertencer a um passado distante. Claro, até que esse pesadelo ressurja quando uma nova liderança indígena aparecer misteriosamente morta ou até que um juiz federal tresloucado, em plena madrugada, acate uma ação de reintegração de posse bancada por fazendeiros. A luta sem trégua dos diversos povos indígenas e ribeirinhos que criticam duramente o governo federal por conta da polêmica construção e da péssima condução dos processos de licenciamento ambiental e de instalação da Usina de Belo Monte perde audiência a olhos vistos nas redes sociais e nos jornais escritos e televisionados. O sul da Bahia pega fogo a cada três meses.
Em meio a florestas, prédios, barcos, corações e mentes queimando de norte a sul do país – e às sucessivas e perniciosas ações de “judicialização” e tentativas de “legislativização” (desculpem o pobre neologismo) da formulação e aplicação da política indigenista –, o Poder Executivo, via Ministério da Justiça, vai colocando em prática e propondo ações como (1) a referida tentativa de reformulação do processo de demarcação de terras indígenas, (2) a dificílima e nada eleitoral desintrusão de não índios de terras indígenas homologadas em governos anteriores (Maraiwatsede, Raposa Serra do Sol e Awa-Guajá), (3) a introdução de hidrelétricas com altos impactos socioambientais, (4) planos sérios e horizontais, com participação indígena e de seus aliados, de gestão
territorial e ambiental de terras indígenas, como é o caso da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI),e (5) o notório esvaziamento da Funai, transformando-a num órgão politicamente acéfalo, com cara de braço administrativo.
As consequências desse varejão de ofertas que parecem (ou aparecem) desconectadas são claras: enquanto, no atacado, o governo federal e a Funai são satanizados por todos os lados, eles conseguem aglutinar, no varejo, aplausos e vaias entusiasmadas e momentâneas sobre cada uma das ações elencadas.
Em um movimento mais do que necessário, em vez de continuar a atender no varejo – e, portanto, de maneira contraditória e esquizofrênica – a demandas de segmentos sociais com projetos tão distintos e conflitantes de sociedade, o governo federal deveria buscar fortalecer a Funai política e administrativamente – e isso foi esboçado há três ou quatro anos – para desempenhar o papel de mediadora e condutora da política indigenista nacional, que, em uma síntese preliminar, poderia se pautar por três grandes proposições norteadoras:
a) pela efetiva articulação de ações no campo das políticas indigenistas com a aglutinação de dados que estão dispersos pelos ministérios federais e tantos outros órgãos estaduais e municipais envolvidos com a questão indígena (inclusive ONGs e associações indígenas) para a construção de um diagnóstico socioambiental abrangente, de caráter quantitativo e qualitativo. Tal diagnóstico deve possibilitar uma fotografia precisa das atuais 641 terras indígenas e 240 povos espalhados pelo país no que diz respeito às singulares situações fundiárias, ambientais, educacionais, de saúde, de geração de renda, de proteção e vigilância territorial, de obras de infraestrutura impactantes e outros aspectos relevantes.
b) que esse diagnóstico se torne a base para a construção de um quadro geral que classifique as terras indígenas e os povos residentes em níveis de prioridade de atendimento em cada uma das dimensões elencadas, distinguindo, em particular, os povos que necessitam urgentemente da identificação e demarcação de terras (um problema de acesso) daqueles que já têm essa dimensão resolvida e precisam, de fato e urgentemente, da colocação em prática e apropriação de mecanismos de gestão territorial, econômica e ambiental que lhes permitam uma inserção definitiva e equilibrada, consequentemente, sustentável, na sociedade regional na qual se encontram (portanto, um problema de permanência).
c)que as duas ações anteriores convirjam para a necessária reformulação jurídica da relação entre povos indígenas, sociedade civil e Estado, não no aparato legal estrutural já garantido pela Constituição Federal, e sim por meio da retomada da discussão do “Estatuto do Índio” e de sua consequente atualização.
De maneira concreta, essas proposições, uma vez tomadas como eixos norteadores de uma política indigenista rigorosa, confiável e democrática, apontariam para (a) a mais do que necessária e urgente identificação, desapropriação e demarcação de terras indígenas para os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul; b) o estudo e formulações criativas da regulamentação definitiva de atividades como pedágio, garimpo, arrendamento e extração de madeira, que se escondem por trás da trama e do drama nos quais estão enredados os povos tenharim, a população regional e outros agentes que conseguem se manter invisíveis (e, com isso, atuar nos bastidores como protagonistas), como também tantas outras situações em que encontramos terras indígenas “homologadas no papel”, já que absolutamente desprovidas de gestão, proteção e vigilância territorial; c) a atuação firme do governo federal para exigir de suas próprias instâncias governamentais e dos empreendedores privados, de maneira rigorosa e inadiável, o cumprimento urgente das medidas mitigadoras e compensatórias para os povos atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte (e aqui a distinção e regulamentação das interpretações controversas a respeito de “participação”, “consentimento” e “veto” é outra frente estratégica a ser atacada com urgência).
Por conta da política do varejo, as ações e medidas propostas aparecem claramente desconectadas de um projeto de maior envergadura para a construção de um país mais equilibrado no que diz respeito ao atendimento das demandas dos diversos setores que compõem o mundo rural em bases politicamente mais sustentáveis e, portanto, menos inflamáveis.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu o Brasil como um país pluriétnico ao garantir as diversidades identitária, territorial e linguística como direitos constitucionais inalienáveis. Por outro lado, a diversidade de atividades econômicas e ocupações profissionais aqui existentes, vivamente articuladas a um regime capitalista-democrático fundado em brutal desigualdade fundiária e econômica, produziu, produz e continuará a produzir e a espalhar país afora milhares de potenciais garimpeiros, fazendeiros, posseiros, madeireiros, sem-terra, operários de hidrelétricas etc. Com esse contingente populacional multifacetado e com interesses contraditórios em circulação frenética pelo território nacional, o que não falta são cenários inflamáveis a envolver esse conjunto de atores mais ou menos amadores, mais ou menos profissionais, e todos no aguardo tenso da estreia (ou reestreia) do próximo drama.
“Chegar antes” (e não depois, como uma espécie de “bombeiro interétnico” atabalhoado) e, portanto, ser a fiel depositária de uma desejada pactuação de convivência entre tais agentes deveria ser hoje o grande objetivo da Funai, afinal, nenhum dos atores envolvidos desaparecerá da vista do outro, apesar do desejo que alguns mais amalucados manifestam em relação a isso, em nada discretos apelos midiáticos.
Não custa repisar: a quem interessa a não promoção de tentativas de diálogo democrático entre as partes envolvidas, ainda mais quando se sabe (mas não se divulga com o alarde tão necessário) que inúmeras parcerias formais e informais de boa convivência e de trocas entre índios e não índios estão, neste exato momento, ocorrendo por todo o país?
Diante dessa quadratura do círculo, e do circo e do cerco ideológico a ela associados, não seria por demais apelar para que todos os lados envolvidos nessa fervorosa “guerra santa” em que tem se transformado a questão indígena no Brasil executassem urgentemente um singelo ato inaugural de boa vontade: em vez de jogar lenha nas fogueiras que ardem país afora, suas narrativas e práticas deveriam apontar para a introdução de estratégias concretas de solução dos inúmeros conflitos interétnicos em curso ou que ainda se anunciam no horizonte, sobretudo em um ano que promete ser extremamente quente.
- Luis Roberto de Paula é antropólogo e professor adjunto dos cursos de bacharelado em Ciências e Humanidades e Planejamento Territorial da UFABC*