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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O segundo genocídio do povo curdo

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18/10/2014 16h45 – Atualizado em 18/10/2014 16h45

Fonte: Brasil de Fato

Quando a edição nº 607 do Bra­sil de Fato estiver nas bancas, os com­batentes curdos de Kobane, cidade cur­da da Síria que faz fronteira com a Tur­quia, podem estar todos mortos, após a heroica resistência aos jihadistas do Es­tado Islâmico.

Tal acontecimento provoca muitos questionamentos. De fato, por qual mo­tivo, real e verdadeiro, tanto o gover­no regional curdo, liderado por Baraza­ni, quanto o governo xiita de Bagdá e ain­da o comando da aliança anti-Estado Is­lâmico, chefiada pelos EUA, pouco fize­ram para impedir que o cerco a Kobane se transformasse em um massacre?

A resposta não é simples, já que o ce­nário regional é extremamente comple­xo com a Síria de Assad que sofre os efei­tos de uma guerra civil planejada no ex­terior, sem que se consiga a queda do re­gime de Damasco.

O próprio Iraque, por conta do posicio­namento das lideranças xiitas, que repre­sentam 60% da maioria do povo iraquia­no, preferiu ir em direção da catástrofe institucional no lugar de dividir com os sunitas o gerenciamento do Estado e de sua economia, totalmente dependente da exploração do gás e do petróleo.

O Irã, apesar das mudanças introdu­zidas pelo novo presidente Rohani sen­te ainda os efeitos das sanções e, sobre­tudo, da política de perseguição política, diplomática e geoestratégica promovida pela Arábia Saudita, Estados do Golfo e, sobretudo, pelos EUA.

A Turquia, que já renunciou à preten­são de ser um rebaixado país da União Europeia, tenta, agora, a todo custo, se garantir no lugar de primeira nação ára­be no Oriente Médio, ao realizar uma aliança econômica e militar oculta com Israel. No mesmo sentido, o governo turco é o fiel executor da estratégia dos EUA, tentando, assim, ganhar mais au­tonomia na guerra civil síria apoiando os homens do Estado Islâmico que repre­sentam o novo sujeito político do Iraque.

Para ligar os pontos das diferentes situ­ações políticas e militares nessa comple­xa região do mundo, realizamos uma en­trevista com o analista político Alessan­dro Perri, que por estar em Istambul pô­de aclarar e desvendar alguns mistérios políticos relacionados à “questão curda”, ao futuro do Iraque, ao atual contexto na Síria e às confusas intenções de Obama e dos generais do Pentágono.

Brasil De Fato — O Partido dos Trabalhadores Curdo (PKK) e outras entidades denunciaram a “limpeza étnica de baixa intensidade” que foi realizada contra o povo curdo durante quase 15 anos. Por qual motivo os EUA e os países da Otan diziam que nada sabiam?

Alessandro Perri – Desde o início da década de 1980, todos os governos dos países da Otan sabiam que tipo de ativi­dades os grupos especiais do exército tur­co, dos serviços secretos, desempenha­ram juntamente aos paramilitares para reprimir a rebelião do povo curdo, lide­rada pelo PKK, que havia promovido um amplo movimento de guerrilha urbana e rural no Curdistão. Por isso, a repressão foi articulada em termos de deep State, ou seja: o Estado turco ao criar as dife­rentes estruturas da contraguerrilha lhe conferia, também, uma autonomia ope­rativa que determinou a criação de um Estado no Estado. Por isso, os militares e os paramilitares puderam criar as death lists com as quais eliminavam militantes e simpatizantes da causa curda, fazendo, inclusive, desaparecer seus corpos.

De que forma a justiça do dito “Estado de Direito” turco conseguiu desvendar o papel dos paramilitares?

Em 2007, a organização ultranacio­nalista Ergenekon foi acusada de terro­rismo, por isso, os juízes abriram uma ampla investigação, durante a qual Ab­dülkadir Aygan e depois Adil Timurtas admitiram que integraram o grupo pa­ramilitar Jitem que “trabalhava” com as listas da morte.

A heroica resistência dos curdos em Kobane contra os batalhões do Estado Islâmico vai recolocar a “questão curda” na ordem do dia, tal como aconteceu em 1915, na Conferencia de Paz de Paris ou será possível encontrar uma solução sem transformar a questão curda em mera utopia?

O antigo projeto nacionalista de uni­ficar todos os curdos em uma única na­ção continua uma utopia. O PKK, por exemplo, agora aposta mais na organi­zação das comunidades através da im­plementação de formas de governo par­ticipativo, chamado também de “auto­governo-comunitário”. E nesse sentido a experiência que o PKK e o PYD (Par­tido de União Democrática) realizaram em Rojava com o respectivo “Manifesto do contrato social de Rojava”, foi, de fa­to exemplar. Por isso, o líder tradicional dos curdos do Iraque assinou uma táci­ta aliança com os EUA e com o governo turco de Erdogan – a quem vende o pe­tróleo de Mosul, portanto do Iraque – até mesmo para marcar um maior dis­tanciamento político em relação ao PKK. Portanto, hoje, entre os curdos há uma disputa pela condução política e, conse­quentemente, para decidir como comba­ter o Estado Islâmico.

Uma vez eleito, o líder islâmico Tayyip Erdogan manteve inalterados os acordos econômicos e, sobretudo, a cooperação militar com Israel. Ao mesmo tempo, na campanha eleitoral, esbravejou contra o sionismo por impedir a criação do Estado palestino. É uma contradição ou uma forma de manipular o eleitorado islâmico turco e o mundo árabe?

A verdade é que as relações com Isra­el nunca foram postas em discussão, in­clusive durante o governo de Necmettin Erbakan, que é um líder islâmico mui­to mais radical do que o atual presiden­te turco. Por outro lado, os governos is­lâmicos do AKP sempre foram populis­tas, no sentido de se mostrarem agres­sivos, machistas e de estarem prontos a lutar contra “os poderes ocultos”. Um marketing político muito bem realizado para conquistar e iludir os eleitores com a sensação de estarem protegidos pelo “Grande Pai dos Turcos”. Além disso, o AKP é um partido islâmico que, oficial­mente, deve defender a Palestina, que, historicamente integrou o Império Tur­co de 1516 até 1918.

Em maio, Erdogan não atacou o Estado Islâmico porque os jihadistas haviam sequestrado 50 turcos em Mosul. Em setembro, admitiu que a derrota do Estado Islâmico reforçaria o poder de Assad na Síria. Os EUA e a Otan nunca condenaram o colaboracionismo da Turquia com o Estado Islâmico. Afinal, essa realidade esconde objetivos geoestratégicos que os EUA não podem ainda revelar?

Para os EUA, o grande problema é o fu­turo do Iraque, já que a maioria xiita não pode ser totalmente desconsiderada. Por outro lado, a Casa Branca tem apenas a palavras de Barazani e não de todos os líderes do Conselho do Curdistão. Mais complicada é a situação na frente sunita, visto que para o seio do Estado Islâmico confluíram todos os adeptos de Saddam e, portanto, do Partido Baath, que não é fundamentalista e tão pouco se conver­teu ao islamismo. Portanto, tudo se man­tém no stand by.

Mas o imobilismo do exército turco ao longo da fronteira e as atividades do serviço secreto militar (MIT) evidenciam um mal disfarçado colaboracionismo com o Estado Islâmico. Por qual motivo?

Se considerarmos que a experiência do “manifesto do contrato social das popu­lações de Rojava” foi uma opção política revolucionária que deu certo e que rom­peu com a manipulação midiática dos homens do AKP, é evidente que o presi­dente turco, Erdogan, apoia o Estado Is­lâmico, porque com a queda de Kobane ficaria inviável, também, a proposta de autogoverno das comunidades curdas. De fato, Erdogan vetou a criação de um corredor humanitário ao longo da fron­teira com a Síria para impedir que o PKK ajudasse os irmãos curdos-sírios, atual­mente sitiados pelos batalhões do Esta­do Islâmico. Afinal, uma vitória do Esta­do Islâmico sobre os curdos da Síria e do Iraque em Kobane é de fundamental im­portância para o governo turco redimen­sionar em termos políticos e no Oriente Médio o futuro da questão curda. É claro que os EUA e os países da Otan apoiam a estratégia de Erdogan.

O Estado Islâmico sustenta suas atividades militares com o roubo do gás da Síria e do petróleo do Iraque, graças à colaboração das empresas turcas que administram os dutos até os terminais do porto de Ceifan, os bancos do Qatar e uma série de empresas fantasmas que oficialmente compram o gás e o petróleo que, na realidade, permanece na Turquia. Por qual motivo a Opep, o mercado e os EUA ficaram calados, tendo em conta que quando os jihadistas de Misurata, na Líbia, tentaram vender petróleo logo a Sexta Frota interveio?

O Estado Islâmico, inicialmente, ven­dia o gás e o petróleo a preços de ba­nana, quase 30% do valor fixado pela Opep. Depois, para evitar reações por parte do mercado, aumentou para 50%, inclusive porque o grande comprador é o governo da Turquia, que tem uma enorme necessidade de gás e de petró­leo. Segundo algumas fontes da oposi­ção turca, as vendas alcançaram quase 10% do consumo nacional turco. É cla­ro que também Obama fechou os olhos, visto que desta forma, a Turquia ficava fortalecida na região em função de sua relação privilegiada com os homens do Estado Islâmico.

Caso a guerra contra o Estado Islâmico continue, os EUA poderão impor a divisão do Iraque com a formação de três novos Estados étnicos e religiosos?

Isso significaria uma vitória estratégi­ca dos EUA em todos os sentidos. Mas para isso seria necessário desativar por completo a estrutura de poder da maio­ria xiita e ao mesmo tempo desarticular as lideranças xiitas da influência irania­na. Por outro lado, o regime do presiden­te da Síria, Assad, deveria estar em pe­daços, algo muito difícil de acontecer vis­to que Assad conseguiu contornar os ata­ques dos grupos jihadistas e agora pas­sou ao contra-ataque.

A volta dos caça-bombardeiros dos EUA e dos países da Otan no céu do Iraque e uma eventual derrota do Estado Islâmico pode favorecer o ataque à Síria – como desejaria a Arábia Saudita e Israel – para depor o governo de Assad e colocar no poder uma “junta de salvação nacional” totalmente controlada pelo Ocidente?

A deposição de Assad por via militar é uma previsão muito arriscada, visto que a guerra civil não provocou os efeitos planejados. Por outro lado, os países da Otan, ao bombardear novamente o cen­tro do Iraque para destruir o Estado Is­lâmico sem obter resultados tangíveis, tornou essa aliança bastante impopular. Um contexto que, nesse momento, real­ça o papel político dos homens do parti­do Baath e de todos aqueles que apoia­ram Saddam. Hoje, uma segunda ten­tativa militar para depor Assad tem um preço político muito alto, inclusive por­que se deve ter em conta o peso político e militar que a Rússia e o Irã, agora, detêm na região. Não são mais simples especta­dores como em 2011.

Nesse contexto qual será o papel do Irã, que também tem problemas com a minoria curda?

O Irã de hoje não é mais o Irã de Ahmadinejad. Muitas coisas mudaram com o novo presidente Rohani que abriu a venda do gás aos países da União Eu­ropeia, aliviando a pressão dos EUA que continuam exigindo o fechamento de todos os laboratórios de processamento de urânio. Porém, as mudanças na po­lítica econômica não alteraram o proje­to estratégico do Irã que quer continuar a ser o país xiita mais forte e importante da região. Por isso, Rohani apoia os de­fensores curdos de Kobane e garantiu a Assad um apoio incondicional em caso de ataque. É claro que Assad está ava­liando a situação. De fato, o governo de Damasco não quer entrar em uma nova guerra agora que começa a ter a quase certeza de estar saindo do túnel da sub­versão jihadista.

Achille Lollo é jornalista italiano, correspon­dente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.

O segundo genocídio do povo curdo

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