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sábado, 23 de novembro de 2024

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12/03/2018 16h20

Conversa nada fiada / Por Odil Puques

Por Odil Puques

Dizem que moleque tem juízo só até o meio dia, depois o diabo atenta e o espírito do coisa ruim baixa na gente, por isso aprontamos tanto e não há chinelada que resolva, que juízo é bom, mas só depois dos 15, 16 anos quando então estamos ficando ‘homenzinhos’.

Pois naquela minha época de saci, viviam em Amambai três conhecidos ‘malucos’ que eram nossos alvos prediletos e faziam parte do nosso dia a dia de peraltices. O primeiro a que me refiro era o Cid Panela. Magrelo, roupas sujas e amarrotadas, com um só dente na gengiva de cima, o pobre coitado vivia de mendicância pelos arredores da Igreja Matriz e do prédio da Câmara Municipal, localizados ambos na área central da cidade, o porquê do apelido nunca soube, o fato é que ele o odiava. Pra quê. Mesmo que oferecer doce de arroz doce pra molecada. Passava uma turma por ele e começavam a gritar: Panela, panela, Cid Panela, ele não se aguentava e saía em perseguição aos guris, tacando pedradas e proferindo xingamentos de toda ordem e espécie, estes se espalhavam, cada um prum lado em desabalada carreira, que guri nessa idade corre mais que vento de agosto.

Cansado, o Cid voltava pros seus cobertores e laivinha de novo a catrefa de capetinhas a repetir, panela, panela…Terminava o dia o Cid tava mais morto do que vivo, tantos moleques passavam por ele, tantos o inticavam, tanto ele corria atrás, xingava e tacava pedra e o pior que eram várias as turmas, uns indo pra escola, uns voltando desta, indo pra jogar bola, tudo era motivo pra desviar o percurso, passar em frente à Câmara e mexer com o coitado.

De repente sumiu o Cid. – Foi para Campo Grande fazer tratamento – diziam uns, outros, que os parentes o levaram para morar com eles no interior de São Paulo e ainda os que garantiam ele ter passado desta para melhor. O fato é que ficou um vazio naquele território tão dele entre a Câmara e a Igreja e só depois que ele desapareceu é que sentimos a falta que nos fazia, percebemos a verdadeira importância que o Cid tinha para nós, ele era parte do nosso dia a dia, tínhamos uma convivência sagrada, em época de férias escolares nos reuníamos e vínhamos até ele exclusivamente para vê-lo, xingá-lo e sair correndo, sob uma chuva de pedradas e ele, penso, nos aguardava ansiosamente, quem sabe a que horas da noite saía por aí catando as pedras já sabendo que as utilizaria contra nós no dia seguinte, decerto depois de algum tempo já sabia exatamente quantos grupos iam lhe fazer desfeita e provinha o seu estoque de pedras de acordo com a demanda, talvez nós fôssemos a sua razão de existir, os únicos que trocavam com ele algumas palavras, mesmo que fossem desaforos, e ele por seu turno podia extravasar toda a espécie de humilhação, de dor, de abandono que sofria.

Com a sua ausência passávamos pelo local sorumbáticos, pensando que exatamente àquela hora estaríamos xingando e se preparando pra correr. Perdão Cid.

Outro ‘doido’ conhecido desta época e também alvo de nossas zombarias era o ‘Chimite’. Este apelido ele o tinha porque a qualquer questionamento, sobre sua pessoa, sobre o tempo ou sobre o preço do gado, respondia com o gesto da mão indicando positivo.

Anão, de um metro e meio mais ou menos, tinha ele, sei hoje, só um pouco de dificuldades mentais, visto que era picolezeiro, sabia dar troco e tudo mais. Mas coitado dele se atravessasse nosso caminho. Quando estava com um carrinho de picolé uma turma o distraía e a outra lhe assaltava os geladinhos. Que pecado. Quando o encontrávamos solitário pelas ruas da cidade, lhe xingávamos tanto, enfurecíamos-lo a ponto dele tentar avançar contra nós, como era mais ou menos da nossa altura e se movia com certa dificuldade, o enfrentávamos, tomando certos cuidados claro, porque se ele pegasse um de nós, adiós tia chic , quando ele atacava um, outro lhe pulava nas costas e assim sucessivamente, de modo que ele não pegava ninguém e fazia a nossa algazarra, nosso divertimento, até cansarmos daquilo ou algum adulto vir em socorro do pobre.

O Chimite morreu dias desses, eu já estava adulto, morando de volta em Amambai, pena não ter sabido do dia do enterro, iria lá pra pedir perdão também. Lá de cima ele há de entender que não havia maldade em nosso coração, apenas uma vontade louca de brincar, se divertir, correr certos riscos, que criança é criança em qualquer lugar do mundo.

Minha última personagem ainda está por aí, lôca de faceira. A Lídia Lôca. Essa era mais do mundo imaginativo e intimidativo da molecada, porque por qualquer arte, qualquer desobediência, sofríamos de imediato a ameaça de que iriam chamar a Lídia Lôca para nos corrigir. Pavor geral. No mesmo instante, transfigurávamos do dêmo em arcanjo Gabriel, tamanho era o medo.

Dizem que a Lídia ficou assim meio tantã, porque lhe levaram uma filha. Que ela estava passando roupa, com ferro quente em brasas e alguns malfeitores aproveitaram o momento de distração e roubaram-lhe uma das filhas, ainda em tenra idade, que ela saiu em perseguição, mas começou a chover e aquele choque, misturado à dor da perda da filha a deixou assim. O fato é que a Lídia se vestia a caráter das antigas mulheres paraguaias. A começar pelas tranças, como tinha – e ainda os tem – cabelos longos, repartia-os ao meio e fazia duas tranças, uma com uma fita amarela e outra com uma fita vermelha, o vestido sempre cumprido, com detalhes de ‘al poy’ – na frente, unhas dos pés e das mãos sempre pintadas de vermelho e ‘sombrero piri’ na cabeça, vez ou outra quando não estava de chapéu, era comum vê-la usando folha de mamona, como guarda-sol.

Falava sempre alto, quase gritando, acho que é por isso que tínhamos tanto medo, porque duvido que fosse capaz de qualquer maldade, nunca soube de nenhuma, só que ela habitava nosso imaginário e nossos pesadelos infantis. – Cuidado, que vou chamar a Lídia Lôca – era o suficiente para acalmar os nossos nervos. Coitada, acho que na verdade, ela nunca soube o que imaginávamos dela e nem que a chamavam por este nefasto apelido. Pelo menos, está ali pela Vila Limeira, bela, sempre bem vestida e feliz. E nossa geração há de se desculpar com a Lídia não povoando o imaginário dos filhos com ameaças de que ela viria para pegá-los. Ela não merece.

Odil Puques é advogado, escritor e apresentador de programa de rádio

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