04/12/2018 21h09
Movimentos sociais, sanitaristas e organizações internacionais apontam as contradições do atual sistema agroalimentar, produtor de doença e injustiça social. A agroecologia ganha importância no debate sobre o que fazer para superar o modelo da ‘revolução verde’.
Por André Antunes
O atual sistema agroalimentar é produtor de doença, iniquidade social e injustiça ambiental. As evidências disso se acumulam: da contaminação de alimentos e intoxicação de trabalhadores rurais por agrotóxicos, passando pela poluição do ar, dos rios e dos solos; pelos resíduos de um sistema dependente dos combustíveis fósseis, chegando aos problemas gerados pelos hábitos alimentares nada saudáveis fomentados pela indústria alimentícia – com seus produtos processados, ricos em gorduras e conservantes e pobres em nutrientes.
Segundo estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), mais de 800 milhões de pessoas passam fome hoje no planeta. Dois bilhões têm uma dieta pobre em micronutrientes, ao mesmo tempo em que a obesidade é uma epidemia em escala global. A diabetes, as doenças cardiovasculares e o câncer – muitos dos quais relacionados direta ou indiretamente ao sistema agroalimentar – causam milhões de mortes todos os anos, e representam um enorme fardo para sistemas de saúde de todo o mundo: para citar um exemplo, em 2010 estimou-se que 12% das despesas globais com saúde foram gastos somente com o tratamento da diabetes.
Este cenário sinaliza a urgência de uma mudança de paradigma no modo como a humanidade produz, distribui, comercializa e também consome seus alimentos. Para muita gente – seja no movimento social, em organizações internacionais ou no âmbito acadêmico – a alternativa já existe, e responde pelo nome de agroecologia.
Ciência, prática e movimento social
Mas o que é agroecologia? No Dicionário da Educação do Campo, publicado em 2012 pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e pela Expressão Popular, os agrônomos Dominique Guhur e Nilciney Toná definem a agroecologia como “um conjunto de conhecimentos sistematizados, baseados em técnicas e saberes tradicionais (dos povos originários e camponeses) que incorporam princípios ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas” descaracterizadas pela chamada ‘Revolução Verde’.
Este foi o nome dado ao processo que, a partir da década de 1950, introduziu em larga escala no meio rural um pacote tecnológico que inclui, além dos agrotóxicos, insumos químicos, sementes transgênicas, bem como irrigação intensiva e mecanização em massa da produção agrícola. Seus defensores argumentavam que assim seria possível produzir alimentos suficientes para uma população crescente. Paulo Petersen, do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), argumenta que isso se mostrou falso, e que os impactos negativos deste processo não demoraram a ficar evidentes. No Brasil, diz ele, é no enfrentamento aos agrotóxicos e à espoliação produzida pelo agronegócio que a chamada agricultura alternativa, que forneceu as bases para o que depois viria a ser chamado de agroecologia, se consolidou também como um movimento político.
“A industrialização gerou uma desconexão entre a agricultura e a natureza, entre a produção e o consumo, que está na raiz dos impactos negativos do ponto de vista da degradação do solo, perda de diversidade, deterioração da qualidade dos alimentos, empobrecimento da população. A agroecologia faz a crítica a esse modelo, ao mesmo tempo em que aponta caminhos para reconectar agricultura e natureza, produção e consumo”, afirma Petersen.
Produção científica em diálogo com saberes populares, práticas agrícolas sustentáveis praticadas pelos povos do campo e movimento de reivindicação de mudanças sociais estruturais: tudo isso junto é agroecologia.
Agenda prioritária em um contexto de desmonte
Representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Inês Rugani relata que o órgão, instrumental para a construção de medidas consideradas avanços em políticas públicas de apoio à agroecologia nos últimos 15 anos, como a Política Nacional de Produção Orgânica e Agroecologia, de 2012, tem procurado resistir contra o que chama de “sistemático desmonte” no contexto de crise política. Inês cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de 2003, que estimula a compra, pelo governo federal, de alimentos produzidos pela agricultura familiar . “O desmonte em curso é avassalador. Várias metas do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019 não foram para frente ou retrocederam”, revela. Um programa que tem conseguido se manter relativamente estável, segundo ela, é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, similar ao PAA, mas voltado especificamente para a compra de alimentos pelas escolas públicas de educação básica.
Neste cenário a saúde coletiva tem um papel cada vez mais importante, tanto na denúncia dos impactos negativos para a saúde e o meio ambiente da ‘revolução verde’ quanto no apoio ao avanço da agroecologia, defende o assessor da vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde, da Fiocruz para agroecologia, André Búrigo. “A saúde coletiva vem reunindo dados para subsidiar o diagnóstico de que a agricultura industrial causa um grande impacto sobre a saúde das pessoas e sobre o SUS, sem que a promessa de alimentar a população mundial tenha sido sequer cumprida em 70 anos de ‘revolução verde’”, argumenta ele. E completa: “É na perspectiva da promoção da saúde que a saúde coletiva é convocada a contribuir com o avanço da agroecologia e a participar da sua produção”. Por isso, essa agenda tem se tornado cada vez mais prioritária para a Fiocruz. “Ela dialoga com uma série de outras agendas importantes para o enfrentamento da fome, entre outras regressões sociais que estão acontecendo no nosso país. A Fiocruz tem de se colocar como uma instituição estratégica, de Estado, na condução desta agenda”, afirma o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Marco Menezes.
O tamanho do problema
O diagnóstico sobre os problemas da ‘revolução verde’ se ampara em uma produção científica que, em âmbito nacional e internacional, tem revelado os impactos para a saúde deste sistema agroalimentar. Destaque recente é um trabalho desenvolvido por um painel formado em 2015 por especialistas de diversas áreas que dialogam com o tema do direito humano à alimentação. Encabeçado pelo ex-relator especial da ONU para o direito à alimentação, o belga Olivier De Schutter, o International Panel of Experts on Sustainable Food Systems, ou Ipes Food, publicou em outubro de 2017 um relatório que procura desvendar as relações entre alimentação e saúde. O documento faz uma ampla revisão da produção científica sobre os impactos para a saúde deste sistema agroalimentar. E os dados são alarmantes. Em todo o mundo, estima-se que cerca de 200 mil pessoas morram todos os anos por intoxicação aguda por agrotóxicos. As mortes anuais chegam a 346 mil se somadas às intoxicações agudas de trabalhadores rurais por produtos químicos utilizados na agricultura, como o o querosene.
A contaminação ambiental também é foco de preocupação. A agricultura é identificada atualmente como a segunda maior causa de poluição do ar em escala global, sendo responsável por mais de 660 mil mortes prematuras todos os anos. A exposição aos chamados desreguladores endócrinos – produtos químicos que interferem no sistema hormonal – representa atualmente um dos maiores problemas de saúde pública em nível mundial. A literatura científica identifica hoje quase 800 produtos suspeitos de atuarem no organismo como desreguladores endócrinos. Eles estão presentes, por exemplo, nos agrotóxicos, nos hormônios da carne bovina, de frango e nos laticínios e em compostos utilizados como conservantes. Estudos conduzidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente relacionaram a exposição aos desreguladores endócrinos como um dos principais fatores de risco para doenças crônicas, como cânceres e patologias que afetam o desenvolvimento do sistema neurológico. Estima-se que os custos com o atendimento a populações expostas a estes produtos cheguem a 217 bilhões de dólares anuais na União Europeia, segundo pesquisa publicada em 2016 na revista científica Andrology, e outros 340 bilhões de dólares nos Estados Unidos, de acordo com estudo também de 2016 publicado na Lancet Diabetes and Endocrinology.
No Brasil, o Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, publicado em 2015, ilustrou a gravidade deste problema no país. Dados de 2011 do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) identificaram resíduos de venenos em um terço dos alimentos consumidos cotidianamente no Brasil. Segundo o Dossiê, os números, ainda que alarmantes, não mostram a real dimensão do problema, uma vez que outros 35% das amostras apresentaram resíduos dentro do limite do que é considerado aceitável pela Anvisa – a noção de que há um nível seguro de consumo destes venenos é amplamente refutada pelos pesquisadores da Abrasco. Além disso, a análise não permite afirmar a ausência de cerca de 400 ingredientes ativos de agrotóxicos que não são pesquisados pelo PARA, o que é o caso do glifosato, que responde por 40% deste mercado no país. Entre os agrotóxicos identificados nas amostras de alimentos analisadas pelo PARA, estão compostos considerados bastante tóxicos, como alguns organofosforados, que causam vários efeitos danosos à saúde humana. É o caso do carbendazim, fungicida associado à desregulação endócrina do sistema reprodutivo de ratos que em 2012 fez o governo dos Estados Unidos devolver o suco de laranja contaminado produzido no Brasil. Por lá, esse agrotóxico teve o registro cancelado. Por aqui, continua sendo utilizado.
O Dossiê da Abrasco também traz inúmeros exemplos da relação entre o avanço do agronegócio e a contaminação ambiental pelos agrotóxicos no país. É o caso do trabalho da pesquisadora Raquel Rigotto, da Universidade Federal do Ceará, que identificou resíduos de agrotóxicos nas águas utilizadas por comunidades da Chapada do Apodi (CE), uma área de expansão da fruticultura irrigada para exportação no semiárido brasileiro. Ou então da pesquisa realizada em 2011 pelo professor Wanderlei Pignati, na Universidade Federal do Mato Grosso, que identificou a presença de pelo menos um tipo de agrotóxico em todas as amostras de leite materno coletadas de 62 mulheres em Lucas do Rio Verde, epicentro da monocultura de soja e milho naquele estado, que hoje é uma das principais fronteiras de expansão do agronegócio no país.
A agroecologia e seus benefícios
Paralelamente, pesquisas têm mostrado os benefícios da implementação de alguns dos elementos basilares da agroecologia, como a produção orgânica e a diversidade de culturas nas lavouras. Um outro relatório publicado pelo Ipes Food em 2016 reúne alguns destes resultados. O documento cita, por exemplo, um estudo de 2007 que concluiu que em países subdesenvolvidos a produtividade dos cultivos orgânicos chega a ser 80% maior do que as monoculturas – dado que pesa contra o argumento de que a produção baseada na monocultura e nos agrotóxicos tem maior produtividade.
Outras pesquisas relacionam a produção agroecológica com uma diminuição de até 56% na emissão dos gases de efeito estufa – estima-se que o sistema agroalimentar hegemônico, amplamente dependente de agrotóxicos e fertilizantes químicos, seja responsável por 30% dessas emissões em escala global atualmente. Além disso, propriedades que utilizam técnicas agroecológicas foram identificadas como sendo de duas a quatro vezes mais eficientes do ponto de vista energético (em termos de uso de água, energia, solo e nutrientes) do que grandes propriedades de cultivo convencional. A diversificação da produção também foi apontada em pesquisas realizadas em vários países como tendo um papel importante na formatação de um padrão alimentar mais diverso e mais variado do ponto de vista nutricional.
Segundo Paulo Petersen, da ANA, um modelo agroecológico tem toda a condição de cumprir a promessa não cumprida pela ‘revolução verde’ de alimentar uma população que não para de crescer. “Em primeiro lugar, o agronegócio hoje produz principalmente algodão, soja e milho para ração de gado, entre outras commodities. E não alimentos. Em segundo lugar, temos condição de aumentar muito a produtividade da nossa agricultura familiar, porque boa parte dela ainda produz muito pouco. Com a agroecologia, que são práticas baseadas em recursos e conhecimento locais e em outro tipo de ciência, você consegue produzir mais, com mais diversidade e qualidade”, defende.
Mas Petersen ressalta que não se trata apenas de substituir um modelo pelo outro e continuar produzindo a mesma coisa. A agroecologia, diz ele, também coloca a tarefa de repensar o que é produzido e onde. “Não faz sentido a gente querer impor o consumo, na Amazônia, das hortaliças que são consumidas no sul do Brasil, por exemplo. Esta é lógica do sistema industrial, dominado por um grupo cada vez menor de corporações que dominam do mercado de sementes às redes de varejo, passando pelos agrotóxicos. O que elas querem é reduzir custos padronizando a forma como se produz e se consome em escala global”, pontua. O modelo agroecológico vai pelo caminho contrário, diz o agrônomo.
Referência mundial essa área, no Brasil os exemplos de comunidades e agricultores que produzem de acordo com o modelo agroecológico estão espalhados por todas as regiões. Produção de alimentos, de plantas medicinais e fitoterápicos e também ações de saneamento ecológico são exemplos de áreas que evidenciam a relação entre agroecologia e saúde de forma mais concreta. Nas próximas páginas você vai ficar conhecendo algumas delas.
Menos agrotóxicos, mais saúde
A região metropolitana de Belo Horizonte é referência nacional em agricultura urbana e agroecologia. Ali, grupos como a Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Rede) e a Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana (AMAU) trabalham com assessoria técnica em agroecologia para diversas iniciativas como a horta de José Adão Chaves e Ana Maria Pereira. O casal simboliza a convergência de duas lutas sociais importantes: pela moradia e pela soberania alimentar e alimentação saudável. Eles moram na Ocupação Vitória, surgida em 2013 na região do Isidoro, área do maior conflito fundiário urbano do Brasil.
A horta fica nos fundos de uma casa de alvenaria, construída aos poucos pelos dois. O pequeno barraco de madeira e lona que serviu de abrigo logo após a ocupação permanece ali, e hoje funciona como uma espécie de depósito. “Tenho dó de desmanchar. Tem muita história”, conta Adão, que relata que ele e a mulher vieram para o Isidoro fugindo do aluguel alto no bairro de São Benedito, em Santa Luzia, na grande BH. “Não tinha água nem luz aqui. E a gente passou muito medo das ordens de despejo, principalmente na época da Copa”, lembra. Uma luta diária, completa Ana Maria. “Mas uma luta gostosa. Isso aqui estava abandonado, era só mato e nada mais. Terra abandonada não tem dono. É de quem ocupa e produz, como nós”, afirma.
Foi em meio ao processo de ocupação que conheceram a agroecologia, por meio de grupos como a AMAU e a Rede. “No começo eu fiquei com um pé atrás. Não acreditava que dava para plantar sem veneno. Lá no norte de Minas, de onde eu venho, a gente mexia com horta também, mas tudo com agrotóxico”, lembra Adão. Ele conta que, aos poucos, foi vendo que não só dava como era melhor produzir sem venenos nem fertilizantes químicos. “Fui vendo que ia brotando e fui gostando. Aí parei de usar produto químico”, diz ele. A diferença se sente no bolso e na mesa, garante. “Barateou muito o custo. E o sabor da verdura também melhorou, o cheiro… Só de andar na horta você já sente”, comemora.
O tema da disputa e do uso dos espaços urbanos aparece com frequência nas experiências da região de BH. É o caso do agricultor urbano Geraldo Piedade, que mantém há 28 anos a Horta Cantinho do Céu, no conjunto habitacional Paulo VI, região nordeste da capital mineira. Ele estima que produz 75 variedades diferentes de hortaliças, frutas e legumes, que são vendidas e também doadas na comunidade local. A horta fica em um terreno que pertence ao governo estadual, que estava sem uso. “Era só mato”, lembra ele, que ainda hoje, quase três décadas depois de começar a produzir no local, teme ter que sair de lá.
Aposentado por invalidez por conta de um acidente com soda cáustica que o fez perder parcialmente a visão, Geraldo recebe pouco mais de um salário mínimo do INSS. O resto da renda vem de bicos de pedreiro e do lucro gerado pela horta, que varia, mas segundo ele gira em torno de um salário mínimo. “Não vendo tudo o que produzo, muita gente da vizinhança vem aqui pedir e eu dou”, conta. Fora o que ele e a mulher deixam de gastar com supermercado todo mês, que segundo ele gira em torno de R$ 600. “Tudo sem veneno”, ressalta. No intercâmbio com a Rede, ele conta que aprendeu técnicas de manejo agroecológico como um adubo feito a partir de folhas verdes, esterco e urina de vaca, e também um minhocário, para onde vai boa parte dos resíduos orgânicos que ele produz em casa.
Conhecimento tradicional e agroecologia em prol da saúde
Não são só os alimentos que ganham em qualidade quando produzidos de acordo com o sistema agroecológico. Glauco Villas Bôas, coordenador do Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde de Farmanguinhos, na Fiocruz, argumenta que há evidências científicas de que a agroecologia traz benefícios também para a produção das plantas medicinais e fitoterápicos, outra área importante para o movimento agroecológico. “Temos conhecimento cientifico hoje do papel do ecossistema na produção, pelas plantas medicinais, de metabólitos de importância para a saúde. Para que uma planta produza uma concentração de metabólitos que tenham um efeito farmacológico, é essencial que ela seja produzida em harmonia com outras plantas dentro de seu próprio ecossistema. Essa é uma forte justificativa para a adoção de uma perspectiva agroecológica”, explica Villas Bôas, que ressalta que trabalha com o conceito de sociobiodiversidade, que pensa as populações humanas também como parte dos ecossistemas. “Em termos da relação saúde e plantas medicinais, faz uma diferença grande quando as plantas medicinais são produzidas em sistemas agroecológicos”, argumenta.
Valorizar o saber tradicional é fundamental dentro movimento agroecológico. E é coisa de que Aparecida Arruda entende bastante. Com o conhecimento de causa de quem carrega as plantas medicinais até no nome, ela desenvolve desde 1994 um trabalho de disseminação dos conhecimentos tradicionais das raizeiras em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte. É ali que fica o Ervanário São Francisco de Assis, onde ela trabalha divulgando práticas como o cultivo de hortas urbanas, manipulação de plantas medicinais e de conscientização sobre a apropriação social da natureza. “É um resgate. Minha mãe cuidou de mim a vida toda com as plantas medicinais, mas eu não valorizava aquele conhecimento”, diz Tantinha, como é conhecida. Isso mudou quando ela passou a frequentar um curso de plantas medicinais para ajudar o filho a lidar com crises de bronquite, constantes, a despeito das idas ao médico. A primeira coisa que aprendeu a fazer foi um xarope de umbigo de bananeira, que ela escondia atrás da gaveta da geladeira para o marido não perceber. “Ele resistiu muito”, lembra Tantinha. Só que o tratamento com as plantas medicinais deu tão certo que Fernando, seu marido, que faleceu em 2017, passou de resistente a apoiador, inscrevendo a casa em que moravam em um projeto de incentivo à agricultura urbana oferecido à época pelo Centro de Vivência Agroecológica (Cevae), da Secretaria Municipal de Abastecimento de Belo Horizonte. “Onde era entulho foi nascendo verde. Em pouco tempo nosso quintal se tornou uma farmácia viva”, relembra.
Deu tão certo que eles começaram a trocar experiências com raizeiras de outros estados. Em 1999 ela e Fernando ajudaram a formar a Articulação Pacari, rede formada por organizações comunitárias que praticam medicina tradicional através do uso sustentável de recursos naturais do Cerrado. A organização, que reúne representantes de Minas Gerais, Tocantins, Maranhão, Goiás e Distrito Federal, foi batizada em homenagem a uma planta com propriedades medicinais importante na cultura dos povos do cerrado. Em 2009 ela lançou a Farmacopeia Popular do Cerrado, um registro dos conhecimentos das comunidades tradicionais e dos povos indígenas a respeito da biodiversidade do bioma. “As farmacopeias tradicionais têm uma linguagem acadêmica que não é a dos povos que detêm o conhecimento tradicional, que é quem põe a mão na terra. A gente queria uma farmacopeia com a linguagem popular, das raizeiras”, resume.
Plantas Medicinais no SUS
A 400 quilômetros de Sabará, no município de Petrópolis, estado do Rio, uma parceria firmada em 2012 pela Fiocruz e pela Prefeitura começou recentemente a render frutos na produção de plantas medicinais para distribuição pelo SUS. Trata-se de um projeto aprovado em um edital da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE/MS) para fomentar a organização de arranjos produtivos para produção de insumos de origem vegetal pelo SUS, no âmbito da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, de 2006. Para o projeto foram selecionadas 20 espécies de plantas medicinais adaptadas e com uso tradicional na região, que são citadas em documentos oficiais do Ministério da Saúde como de interesse para o SUS.
Coordenador do setor de plantas medicinais do Palácio Itaboraí, da Fiocruz, que fica em Petrópolis, Sergio Monteiro conta que fazem parte do projeto 20 agricultores da região que já trabalhavam com plantas medicinais e que – depois de frequentarem oficinas sobre temas como identificação, cultivo, beneficiamento e legislação sobre plantas medicinais – começaram a receber as mudas produzidas pelo horto escola criado no Palácio Itaboraí. Ali é feita a secagem, embalagem e estocagem das plantas.
“De cada quilo da planta seca, 500 gramas a gente separa para a dispensação no SUS e 500 gramas a gente entrega ao agricultor para vender na feira”, explica Sergio. Segundo ele, o escopo inicial do projeto foi reduzido por conta de dificuldades para adaptação e problemas com o clima.
Atualmente são quatro as espécies sendo produzidas no âmbito do projeto para distribuição no SUS: o guaco, um broncodilatador indicado para problemas respiratórios; o alumã, para problemas digestivos; o capim-limão, indicado como calmante natural; e a carqueja, para problemas estomacais. Todas integram a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais de Petrópolis. Segundo Sergio, em outubro foi entregue à Prefeitura o primeiro lote de plantas medicinais produzidas pelo projeto, de alumã e capim-limão. “Fizemos também oficinas voltadas para os trabalhadores da rede pública de saúde de Petrópolis, envolvendo médico, agente comunitário, nutricionista, enfermeiro, farmacêutico”, completa.
Saneamento e agroecologia
Para alguns especialistas, o tema do saneamento é um que necessita ser mais bem incorporado ao debate promovido pela agroecologia. E vice-versa. O engenheiro sanitarista Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, defende a convergência entre os dois temas. “O saneamento básico no Brasil teve historicamente uma limitação, tendo sido conduzido pelo setor da engenharia das construções, numa lógica de geração de lucro, de ‘beneficiamento’ da população por meio de ações pontuais que não aumentam a organização comunitária e que não pensam o ciclo das águas de uma forma sistêmica”, aponta.
Para ele, os princípios da agroecologia podem potencialmente enriquecer a construção de políticas públicas de saneamento, no sentido de que reforçam a importância da construção “de baixo para cima”, da organização comunitária, da adequação das tecnologias aos territórios e aos ecossistemas e da preocupação com o manejo sustentável da água. Alexandre acredita que os povos do campo, da floresta e das águas têm potencial de trazer essa agenda para o debate das políticas públicas de saneamento com mais propriedade, por terem historicamente uma relação mais próxima com o ciclo da água. O que não significa que esse debate não caiba em um contexto urbano. “Há experiências importantes de agricultura urbana no país que reutilizem do esgoto doméstico para produção de biomassa, de energia, por meio de tecnologias sociais que promovam processos mais cíclicos e consequentemente mais sustentáveis de manejo da água”, assinala.
Um exemplo prático da relação agroecologia e saneamento é o projeto de implantação do saneamento ecológico na Praia do Sono em Paraty, no estado do Rio. Coordenado pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), parceria entre Fiocruz, Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Fórum das Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, o projeto, segundo Gustavo Machado, coordenador do saneamento ecológico do OTSS, nasceu do diálogo com as comunidades caiçaras da área, que apresentaram o saneamento como um dos maiores carências das comunidades dali.
A tecnologia social escolhida foi o tanque de evapotranspiração, que reutiliza a água e os nutrientes do esgoto para geração de alimentos. Bananas, no caso da Praia do Sono. O tanque é uma caixa retangular impermeabilizada em cujo interior há uma câmara que recebe o esgoto, que pode ser de tijolos ou pneus. Em cima e dos lados dela é colocada uma camada de entulho e em seguida uma camada de brita. Sobre a brita, areia, e por fim uma camada de terra, onde são plantadas bananeiras.
“O esgoto passa pelos pneus, pelo entulho, pela brita, de forma ascendente, subindo pela areia, e vai sendo filtrado, chegando até a raiz das bananeiras, que puxam esse esgoto e vão evapotranspirar essa água, que volta para a atmosfera. E ainda são geradas bananas neste processo”, explica Machado. Basicamente, trata-se da lógica o inversa dos sumidouros, fossas rudimentares muito utilizadas em comunidades rurais, onde o esgoto é lançado e acaba percolando pelo solo, podendo contaminar os lençóis freáticos.
Com financiamento da Funasa e da Prefeitura de Paraty, os módulos da Praia do Sono foram construídos pelos próprios moradores da comunidade. “A ideia era que as tecnologias fossem fáceis de aplicar, de compreender e de fazer a manutenção, feita pelos próprios moradores”, explica Machado. E completa: “É importante que todos sejam responsáveis pelo esgoto gerado, e que ele deixe de ser um ‘problema’. A ideia é que ele possa ser reinserido no sistema produtivo de alguma forma, gerando comida, energia ou nutrientes para o plantio”.
Agroecologia e saneamento na favela
A relação entre agroecologia e saneamento está também nas atividades de um grupo que prova que favela também é lugar de agroecologia. O Roots Ativa está a há 10 dez anos instalado na maior favela de Minas Gerais, no alto do Aglomerado da Serra. Ali o coletivo desenvolve um trabalho que eles chamam de gestão comunitária de resíduos orgânicos, utilizando o lixo orgânico descartado por moradores da área – que como muitas comunidades nas periferias de grandes cidades carecem de saneamento adequado – para fazer compostagem e minhocários. Assim eles produzem os insumos para manter ali um viveiro de mudas e uma horta, além de desenvolverem práticas de permacultura e agrofloresta. O que eles fazem é recolher uma vez por semana os restos de comida produzidos nas casas de cerca de 20 famílias da comunidade. “Aqui tem muito pouca estrutura de saneamento.
Em muitos becos a coleta nem chega”, explica Tiago Lopes, integrante do Roots Ativa. O trabalho contribuiu para diminuir o problema dos ratos, que proliferavam nos locais onde ocorria o descarte do lixo. “O que era comida de rato antes a gente conseguiu dar um destino melhor”, diz Tiago. A coleta e tratamento dos resíduos para o minhocário e compostagem conta ainda com o trabalho de jovens da comunidade, que ficam com parte da renda gerada pela venda das mudas e fertilizantes produzidos no local. As frutas, hortaliças e legumes produzidos ali são comercializados na comunidade e utilizados para produzir alimentos, como hambúrgueres veganos, entre outros, que são vendidos em feiras orgânicas da cidade.
O artigo é de André Antunes, publicado no portal EPSJV/Fiocruz, 30-11-2018.