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sábado, 23 de novembro de 2024

Crônica de Sylvia Cesco sobre Che Tiempo Guaré

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25/07/2020 08h37

Por Sylvia Cesco. Professora, escritora e poeta.

“Ai, de nós… A forma de uma cidade muda mais depressa que o coração de um mortal”. (Charles Baudelaire, poeta francês)

Dizem que a tradução da expressão Che Tiempo Guaré, título do livro de autoria de Nery da Costa Júnior, seria algo como “Meus Tempos Que Se Foram. Ambos muito poéticos, por sinal. Nery é amambaiense de quatro costados, radicado há tempos em São Paulo, tendo ficado à frente da vice-presidência do Tribunal Regional Federal-3 até março deste ano. Não conheço a atuação do Dr. Nery no âmbito de sua formação em Leis e Direito. Mas quanto à área literária, embora ele se julgue um neófito, ( imaginem se não fosse…), o autor amambaiense se mostra um exímio escritor memorialista, maduro, contador de causos e de histoestórias de amor e de saudades; ele é, enfim, uma generosa e iluminada bússola para todos aqueles que também desejam ser intérpretes do seu tempo.

Quando a cópia do original me chegou às mãos, passei longas horas, muitos dias viajando pelos trieiros do encantamento que me levaram até o Alto Amambai, um pedaço de terras situadas na parte meridional de Mato Grosso do Sul , entre o sul de Ponta Porã, o lado leste do departamiento del Amambay , no Paraguai e Ypehun. Abri porteiras de alegria, de risos e tristezas. Também mergulhei em riachos de pranto…Foi sim, uma longa, inesquecível e surpreendente viagem. Mas para lá, eu voltaria, se preciso fosse, muitas e muitas outras vezes para ouvir, ver e sentir tudo de novo…Porque foi lindamente perturbador dar de cara com minha mágica infância e abraçar minha sonhadora adolescência, exatamente iguais às que vivi nesta Cidade Morena. E foi bonito pisar nas estradinhas e ruas amassadas de barro, sentir o cheiro que por lá se sente e o sabor do que por lá se come. E aprender falar em amambaiês, a deliciosa linguagem peculiar daquela região.

Num processo de absoluto controle do uso do signo linguístico, à moda do sociólogo francês Maurice Halbwachs, para quem não há lembranças a que o homem não possa fazer correspondência com as palavras, Nery da Costa Jr, dono de uma memória prodigiosa, reconstruiu e resgatou as vivências de pessoas, sua cultura, seus causos inseridos num cenário que é ao mesmo tempo, abençoado e extremamente rico , mas cujo povo passou por grandes dificuldades, inclusive ele e sua família.

Em madura demonstração de como trançar os fios condutores de uma narrativa linear a partir de dezenas de depoimentos, registros, entrevistas, Nery Costa Jr debruçou-se, por mais de três anos e meio, sobre esse material recolhido pela jornalista Vânia Galceram, por um tempo, e pelo casal de jornalistas amambaienses, José Luiz Nunes Moreira e Viviane Viaut Moreira, essenciais à alma do Che Tiempo Guaré, que o acompanharam com zelo e competência até a última linha desta magnífica obra.

Che Tiempo Guaré está organizado em três partes: I-Gotas do Cotidiano, em que o autor se refere à arte de viver de um povo , com sua Praça, seus vizinhos , vigias e “donos”. Antônia Vera, a matriarca das mulheres “de vida fácil” ( ou difícil?) do lugarejo. A história político-administrativa da época, com críticas e polêmicas e o registro de todos os prefeitos até os dias atuais. Esporte, arte popular, música, tudo passa diante dos olhos dos leitores. Não tem como sair ileso desse mar de deliciosas histoestórias.

A Parte II do livro- Os Cuera- assim mesmo, no singular, que esse termo, de origem tupi-guarani, não se flexiona: é um agrupamento de gente. Mas em sua obra, o autor explica que um cuera é nada menos que um craque. Um ser respeitável que é reconhecido por suas habilidades. Nery selecionou cinco pessoas de seu convívio profissional e social, todas com uma história de amor com Amambai, mesmo lá não havendo nascido. Nas palavras de Nery Costa Jr, os cueras são craques do seu tempo que mereceram ser citados. Criticados. Aplaudidos. Até vaiados. A gosto do leitor. E vieram de mundos diferentes: um paraguaio, outro italiano, outro correntino, outro tinha origem indígena e outro, um caipira típico, tupiniquim. Mas são seus cueras, possuidores de grande conteúdo humano.

Sabres e Tacapes é o título Parte III do Che Tiempo Guaré. Sobre ela, transcrevo ipsis litteris, as palavras do próprio autor, porque penso que nem eu nem ninguém conseguiria traduzir o modo emocionado do autor ao revelar do que se trata Sabres e Tacapes: Na terceira parte, minha lupa vai se encher de dor e compaixão. Vou à mea culpa e vasculho a relação das Armas. A presença marcante do Exército naquela fronteira e sua história vista por quem se viu prosperar no tempo das vésperas da vida sob seu sol e a relativizo em face da questão mais candente do desprestígio que se impõe aos índios Guarani Kaiowa mais algum ou outro terena que fazem do cinturão turvo da cidade de Amambai um efervescente pedido de socorro e palco de turbilhão de injustiças…

Se você, leitor, é um cidadão que se incomoda com as mazelas sociais, que sonha com um mundo de justiça e sem violência; que reconhece que os povos índios também são portadores de direitos constitucionais e de uma mesma humana brasilidade, por certo, a Parte III do Che Tiempo Guaré lhe trará grandes emoções. Ela é, de fato, o que se costuma dizer : um gran finale . Nela se expõe, feito uma chaga aberta, a situação dos nossos indígenas, ainda motivo de grande discriminação e desrespeito.

É de Jamil Martins, arquiteto, poeta, compositor regionalista de Amambaí, a maravilhosa capa deste livro, de extremo bom gosto- na verdade, uma obra de arte: o fundo branco representando o sossego de Amambai daqueles tempos; a Infância – representada pelo menino Nerinho- tranquila, prazerosa, a soltar bem alto uma pandorga -icônica estrela azul, ( a cor do sonho) ; o Cine Primavera, marco da chegada da modernidade em Amambai; e o velho índio tembekuá, Marco Pererá, descalço, caminhando dignamente com seu velho cão, suas flautas, batuques , apitos e chocalhos, para chamar a atenção sobre a triste história de sua gente. Com Apresentação de Ednaldo Luiz de Mello Bandeira, atual prefeito de Amambaí, e Prefácio do compositor Moacir Lacerda, do Grupo Canta-Dores do Pantanal, Che Tiempo Guaré é uma publicação da Biblio Editora-Dourados/MS. Esta obra, absolutamente indispensável, poderá ser adquirida a partir do dia 30 de julho, ao preço de R$ 120, 00 pelo site: chetiempoguare.com.br.

Sobre a autora

Sylvia Cesco nasceu em Campo Grande, MS, em 04/06/1945. Tem formação em Letras, Pedagogia e Psicopedagogia; Especialização em Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade de Taubaté/SP e Pós-Graduação em Educação e Supervisão Escolar pela USP/SP. Professora, também exerceu atividades de gestão pública e privada.É autora e diretora de peças de teatro,elaboradas com textos de poetas regionais, nacionais e internacionais. Letrista de composições gravadas por conhecidos músicos e corais de Campo Grande. Roteirista-auxiliar do filme sobre Glauce Rocha, “Nasce uma Estrela”. Participou, como intérprete ou jurada, de vários Festivais de Música de Campo Grande. Foi Coordenadora da Comissão da Área de Cultura por ocasião dos festejos do centenário de Campo Grande. Publicou: “Guavira Virou”; “Mulher do Mato” ; ” Sinhá Rendeira” “Aldravias” ( Poesias); “Ave Marias Cheias de Raça” ( Contos); “Histórias de Dona Menina” ( Literatura infanto- juvenil); “Três poetas, uma via: aldravia; Participou das Antologias : “Mato Grosso do Sul-40 anos”, “101 Reivenções para Manoel de Barros”; “Antologia de Autores de Mato Grosso do Sul” e “Criticartes”. No prelo: “A Glória desta Morena”, uma antologia, sob sua organização, de contos e crônicas e autores de MS, incluindo textos inéditos da profa. Maria da Glória Sá Rosa.Escreve sobre Literatura para o Jornal “O Estado de MS”. É presidente da União Brasileira de Escritores- UBE/MS.

A história do 17 RC Mec é uma das constantes do Che Tiempo Guaré. Na foto (da galeria do comando da unidade do exército de Amambai), o momento da partida do esquadrão precursor saindo de Pirassununga com destino a Amambai,em 1967.

Capa do livro Che Tiempo Guaré,  por Jamil Martins

Desembargador Nery Costa Júnior / Foto: Divulgação

Crônica de Sylvia Cesco sobre Che Tiempo Guaré

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