16/05/2021 10h00
Liga de clubes africanos é a 1ª a ser operada pela NBA fora dos EUA
Fonte: Igor Santos – TV Brasil
Em agosto de 2018, após a terceira edição de um jogo da NBA (liga de basquete masculino profissional dos Estados Unidos) na África, em Pretória (África do Sul), uma ideia começou a tomar forma: a criação de uma liga de clubes africanos de basquete para não apenas fortalecer as bases, mas também fazer crescer a modalidade no continente, com a colaboração da liga norte-americana e da Fiba (federação internacional da modalidade). A partir deste domingo (16), quase três anos depois, a teoria se tornará prática. A Bal (Basketball Africa League, ou Liga de Basquete da África) começará a ser disputada em formato de bolha, em Kigali (Ruanda). É a primeira vez que a NBA, o suprassumo do basquete no mundo, participará da operação de uma competição fora dos Estados Unidos. E os impactos podem ser imensos.
O senegalês Amadou Fall, que é vice-presidente da NBA na África desde 2010, quando a liga abriu seu escritório no continente, foi nomeado, em maio de 2019, o presidente da Bal. Segundo o dirigente, a nova liga representa o topo da pirâmide de um trabalho que começou pela base, com a criação, por exemplo, de camps (sessões de treinamento) que trabalham com jovens talentos africanos anos antes de eles tentarem se profissionalizar. A parte de infraestrutura ainda é o grande calcanhar de aquiles da modalidade no continente. É ali que pode haver a maior transferência de conhecimento de uma região para a outra.
“A primeira coisa que precisávamos era de quadras. O futebol é o esporte número 1 por aqui porque você sai de casa e consegue jogar em qualquer lugar. Mas no basquete é necessário ter quadras. Então, construí-las era fundamental. Além disso, há também a questão da expertise. Focar no desenvolvimento do trabalho dos técnicos, do regime de treinos. E também criar uma cultura de basquete. A NBA, através da Bal, vai ajudar em tudo isso”, diz o presidente em entrevista por Zoom.
Fall apresenta os exemplos de alguns jogadores de origem africana que chegaram à NBA, como Dikembe Mutombo e Luol Deng, como provas de que o talento sempre existiu por lá. Os dois, assim como Hakeem Olajuwon, pivô nigeriano que foi escolhido na primeira posição do draft de 1984, o mesmo de Michael Jordan, são atletas que alcançaram a liga norte-americana antes que ela procurasse fazer um trabalho na África. E, mesmo com as duas partes tendo uma relação mais próxima na atualidade, ainda há muito o que fazer.
Quem testemunhou isso foi o brasileiro Daniel Soares, ex-atleta da modalidade, que trabalha na NBA desde 2011 no setor de operações de basquete. Daniel, que está em Kigali para colaborar na Bal, tem experiência em participar dos camps que a liga norte-americana realiza ao redor do planeta. Ele se recorda de um participante, hoje conhecido como um dos melhores jogadores da NBA, o pivô camaronês Joel Embiid. Mas, à época, o jovem não se destacou tanto.
“Ele sequer foi escolhido para a seleção daquele camp. Tinha acabado de começar a jogar basquete. Mas realmente perceberam potencial nele. Muitos como ele iniciaram tarde, e alguns conseguiram ter essa oportunidade de participar de eventos assim. Mas muitos outros ficaram de fora”, afirma.
Embiid, que antes praticava vôlei, só foi pegar de fato em uma bola de basquete depois dos 15 anos. A história é parecida com a de um compatriota dele, Pascal Siakam, campeão da NBA em 2019 pelo Toronto Raptors, que chegou a estudar para se tornar padre antes de investir tardiamente no basquete. Amadou Fall sabe que essa não é uma fórmula de sucesso e que os dois provavelmente são exceções à regra. A expectativa é que a Bal atraia mais olhos, e de forma mais precoce, para o basquete, em um continente considerado uma mina de ouro de talento para o esporte.
“Ter a NBA vindo para cá, jogadores africanos que saem do continente e depois retornam e agora também essa competição, tudo isso contribui para um melhor ensino do jogo e a inspirar a próxima geração de jovens que aspiram a ser jogadores”, opina.
Como a competição funcionará
A Bal foi apenas mais uma competição cujo calendário foi afetado pela pandemia. Ela estava marcada para começar em 13 de março do ano passado. Dois dias antes, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia do novo coronavírus (covid-19) e tudo teve que ser reorganizado. A liga já havia selecionado os doze clubes participantes, em uma mistura de campeões nacionais com outros classificados através de torneios qualificatórios. Mas, após tudo o que aconteceu ao redor do mundo, teve que adaptar (e enxugar) o formato da competição. No lugar de uma fase inicial espalhada por alguns países, haverá apenas uma rápida fase de grupos, com as equipes divididas em três chaves com quatro times cada, jogando três vezes dentro do grupo. Os oito melhores passam às quartas, e daí em diante tudo será resolvido em mata-mata, um jogo só, até a final no dia 30. Todo o torneio será realizado na moderna Kigali Arena, inaugurada há dois anos. A ideia inicial era de que apenas a fase final da Bal fosse disputada em Ruanda, mas a pandemia alterou os planos da liga.
Segundo Amadou Fall, se assim quisesse, seria possível fazer uma competição com mais times, devido à quantidade de clubes interessados. Mas, pensando no produto mais atraente para o público jovem, o número considerado ideal foi o de 12 equipes.
Para a primeira edição daquela que passa a ser considerada a principal competição do continente, há alguns destaques. O que chama mais atenção, e gera curiosidade, está na equipe da casa, o Rwanda Patriots. Durante a semana, foi anunciado que o rapper americano J. Cole, um dos mais respeitados e bem-sucedidos do ramo, assinou contrato com o time para jogar a Bal. Cole lançou nesta sexta-feira (14) o álbum “The Off-Season”, que faz alusão à carreira que ele tentou no basquete. Quando perguntado sobre como exatamente vai funcionar essa jogada, Fall desconversa.
“Você deve procurar o pessoal do Patriots [risos]. Uma coisa que é importante para nós é que teremos muita gente nos assistindo. Os jogos serão transmitidos em 215 países. Então, te encorajo a assistir ao jogo deles”, declarou.
O perfil oficial no twitter da liga postou imagens do primeiro treino do Patriots na Kigali Arena e nelas é possível notar a presença do rapper.
Como muitos times apostaram em renovar seus elencos, fazer um prognóstico se torna difícil. A ESPN americana publicou um guia da competição, em inglês, e nela uma equipe é considerada a favorita para vencer a competição: o angolano Petro de Luanda, um clube multiesportivo fundado em 1980, cujo time de basquete é comandado pelo técnico brasileiro José Neto.
Impacto nas seleções africanas
Individualmente, por conta de seus talentos, o basquete africano sempre esteve presente naqueles que são considerados os grandes palcos do esporte: as ligas norte-americanas masculina e feminina (NBA e WNBA, respectivamente). No início da atual temporada, um recorde de catorze jogadores africanos tinham vaga em elencos da NBA, além de outros 30 com pelo menos um dos pais tendo nascido na África. E eles não estão relegados a papeis secundários. Além dos já citados Embiid e Siakam, o ala Giannis Antetokounmpo, que nasceu na Grécia, mas que é filho de imigrantes nigerianos, venceu os dois últimos prêmios de MVP (Jogador Mais Valioso) da NBA. Na WNBA, o prêmio de novata do ano foi vencido duas vezes na última década por atletas americanas, mas também de origem nigeriana, as irmãs Nneka e Chiney Ogwumike. Nneka, inclusive, estrelará o aguardado filme “Space Jam 2”, a ser lançado em julho.
No entanto, o talento que está nos genes não se transformou em sucesso para as seleções do continente até hoje. Tanto no masculino quanto no feminino, os países africanos nunca alcançaram o pódio nem em Olimpíadas nem em Campeonatos Mundiais. Na imensa maioria das vezes, têm como melhores resultados participações que terminaram em 8º ou 10º lugar.
José Neto acredita que isso pode mudar. O técnico permanece como comandante da seleção feminina do Brasil, que não se classificou para os Jogos de Tóquio. Ele tinha um acordo com a confederação brasileira que o permitia assumir um clube caso julgasse interessante. Ele aceitou o convite do Petro de Luanda e está em Angola desde novembro, junto com o preparador físico Diego Falcão. Neto, que já foi técnico do Flamengo e do Levanga Hokkado (Japão), além de assistente técnico da seleção masculina, nunca tinha estado tão perto do basquete africano. Ele se impressionou com o que viu.
“Tivemos recentemente a Nigéria dando muito trabalho para os Estados Unidos no pré-olímpico feminino, que eu acompanhei. Além disso, desde que cheguei aqui percebi que, se eles conseguirem utilizar melhor todo o potencial físico e técnico que têm, será muito difícil derrotar esses países. É impressionante. A cada jogo que fazemos aqui eu vejo algo que nunca tinha visto antes”, revelou o treinador, que tem contrato com o clube até o fim da temporada, em junho, renovável por mais um ano. Neto foi campeão angolano em abril.
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Técnico brasileiro José Neto comanda o Petro de Luanda – Manuel Neto/Direitos Reservados
A crença do técnico brasileiro é acompanhada pelo presidente Amadou Fall. Segundo ele, uma das explicações para o mau desempenho dos selecionados africanos em competições internacionais é também a ausência de uma liga forte no próprio território, que ajude a manter os jogadores por lá e assim desenvolver mais química entre eles. Fall cita o exemplo da própria Angola, considerada a principal potência do continente, que costuma ter os principais atletas atuando no campeonato local. Ele espera que a nova estrutura e a perspectiva de uma liga continental forte alterem os fatores da equação que tem sido desfavorável às seleções da África.
“Reter o talento criado na África jogando na África é fundamental. Não apenas por essa química que ajuda nas competições por países. Ter uma boa estrutura vai fazer com que garotos de 14 ou 15 anos não almejem ir para outros lugares para se profissionalizarem. E, caso acabem optando por estudar no exterior e ir para o basquete universitário americano, verão a África como uma das primeiras opções se não tiverem espaço na NBA. Isso para não falar de outros jogadores com raízes africanas que podem também se estabelecer por aqui”, diz o dirigente.
A sensação de fazer parte de algo que vai revolucionar o basquete em tantos níveis, e possivelmente até alterar o fluxo atual de jogadores de chegada e saída do continente africano, foi umas principais razões para José Neto aceitar o convite, mesmo que não termine em título daqui a duas semanas. A presença de nomes de peso dando cacife ao que a Bal almeja alcançar foi irresistível.
“Não vou mentir. Participar da Bal, com toda essa estrutura montada pela NBA, foi muito atraente. E para você ver, participamos de conferências com Steve Kerr e Gregg Poppovich [técnicos com múltiplos títulos da NBA]. Você vê que o negócio é sério”, concluiu.