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sábado, 23 de novembro de 2024

A trajetória de um guerreiro sonhador

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26/10/2020 10h29

Por Sady Bianchin

“A todos aqueles que nutrem pela opressão, pela falta de memória, a mais profunda repulsa”. (Bertolt Brecht)

Toda obra dialoga com seu tempo. No campo da memória antropológica não importa o período retratado, interpretado o tempo é sempre atual. O pensador e escritor Darcy Ribeiro, dono de uma personalidade forte e extremamente complexa, dotado de uma inteligência vertiginosa de brutal agilidade mental, foi um dos intérpretes do país mais influentes na cultura educacional e política brasileira. O escritor se mantém aceso com sua obra inquieta, pois não há morte perante a produção poética de sentidos, se fosse vivo Darcy estaria completando 98 anos de vida em defesa das minorias oprimidas e dos cartas fora do baralho para a educação, sempre com previsões políticas aguerridas para o Brasil, construído sobre um Estado Nação tardio em cima de golpes, a começar pelo período colonial, que nos deixou uma herança autoritária, paternalista, escravocrata e personalista.

Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922, era filho de Dona Fininha (Josefina Augusta da Silveira), professora primária e Naldo (Reginaldo Ribeiro dos Santos), fiscal das linhas telegráficas. Escreve, aos quatorze anos de idade seu primeiro texto social, crítico, indignado pelo sentimento de revolta e compadecido pela situação de flagelados famintos que ocuparam uma catedral da cidade. Esta imensa capacidade de se colocar na posição dos “outros”, assumir a sociedade e a situação adversa do povo como seu problema desde pequeno, fez o jovem ser mais homem, principalmente quando descobriu o movimento de Luís Carlos Prestes e a poesia de Carlos Drummond de Andrade: “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

Ainda nas terras das Gerais escreve seu primeiro romance, “Lapa Grande”, um dramalhão digno de qualquer estilo de novela mexicana. Em seguida, muda-se para São Paulo e em meio à intelectualidade da pauliceia desvairada ingressa nas fileiras do Partido Comunista. Mas a grande descoberta de sua vida acontece no coração do Rio de Janeiro, quando conhece o Marechal Rondon, uma das figuras marcantes na sua trajetória, principalmente porque convida Darcy Ribeiro para trabalhar com ele no serviço de proteção dos índios, e com esta cultura étnica descobre uma nova maneira de entender o Brasil, e a questão humanística entra em pauta.

Com o espírito inovador e de responsabilidade social, atravessa o Pantanal e concentra suas ideias na literatura indígena, desdobrando seu tempo entre as nações Terena e Kadiwéu, com o auxílio luxuoso de sua companheira antropóloga Berta Gleizer. Numa verdadeira troca simbólica surge o livro “Religião e Mitologia Kadiwéu” (1950). Rumo à floresta amazônica encontra a nação “Urubus Kaapor”, últimos remanescentes dos Tupinambás.
Darcy Ribeiro ganha reconhecimento internacional e com apoio dos irmãos Villas-Bôas propõe a criação do Parque Nacional do Xingu. E, logo após o educador Anísio Teixeira convidá-lo para ser pesquisador no Ministério da Educação e Cultura, com 35 anos, sua produção é intensa, publica: “Uirá sai à procura de Deus” (1974), “Arte plumária dos índios Kaapor”(1957) e “Diários Índios- Os Urubus-Kaapor”(1996).

Neste período, cria a universidade de Brasília, já no governo de João Goulart é nomeado ministro da Educação e Cultura e reitor da UNB, em seguida chefe da Casa Civil. O país havia crescido economicamente desde os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, naquele momento era necessário distribuir a renda e fazer a reforma agrária. Mas naquele contexto histórico, mais “uma pedra no meio do caminho” aparece no trajeto do apaixonado pela civilização tropical – o golpe civil e militar de 1964, uma perversa ditadura que durou 21 anos, deixando a cultura em todas as suas frentes arrasadas, uma terra árida, onde estavam plantados os sonhos daquela geração.

O ato institucional número 5(AI-5), o golpe dentro do golpe, que instala a ditadura total no Brasil, impõe a diáspora, o exílio de Darcy, que vai ser professor no Uruguai, acolhido pela universidade. No Peru trabalha com o governo nacionalista, no México cria a “Universidade do terceiro mundo”. Com a anistia retorna ao Brasil e diz que é uma glória voltar e que só quem foi exilado entende: “Ninguém vê sua casa se não sai dela, se não conhece outra casa”.

Neste recomeço lança o livro “Maíra” (1976), e se casa com Cláudia Zarvos (33 anos mais jovem), recebe o título de Doutor honoris causa na Sorbonne em Paris e funda com Leonel de M. Brizola o Partido Democrático brasileiro (PDT), é eleito vice-governador do Rio de Janeiro e idealiza o ensino de tempo integral, os populares CIEPS, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, proclamando o ditado que escola é uma propriedade básica: “Não pode jogar a criança na marginalidade, na criminalidade, ficará mais caro no futuro, se ela ficar com um revólver na mão”, afirmava o visionário Ribeiro, que é eleito senador pelo Rio de Janeiro e cria a Universidade do Norte Fluminense em Campos com o slogan: “O país que não domina a tecnologia vai ser recolonizado”.

Fragilizado e doente, Darcy Ribeiro sai do hospital e vai se refugiar na cidade de Maricá, na região litorânea do Rio de Janeiro e se dedica durante dois meses integralmente à produção de sua mais importante obra: “O povo brasileiro”, um manual para interpretar a formação da realidade brasileira. Em 17 de fevereiro de 1997, morre em Brasília, mas sua memória é presente como uma lição: “Fracassei em tudo o que eu tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria, fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente, fracassei. Mas os meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Usando a força e o entusiasmo ou aliando os dois, o legado do escritor Darcy Ribeiro mostra que seu pensamento é atual em qualquer época. Sua obra contribui para atualizar sua trajetória. Num momento em que a democracia está em xeque e numa disputa polarizada , é essencial revisitar a sua produção de sentidos, reeducando os indivíduos para a cidadania, através da política de resgate da memória e do limite da representação, edificando a cultura democrática a serviço da ação transformadora para construir a sociedade organizada pela paixão. Que nos permite sonhar que as gerações futuras irão limpar toda a abominação do outro, toda a opressão, para viver condicionado ao amor, à liberdade e à justiça social, na diversidade cultural entre as diferentes matrizes étnicas que formam o povo brasileiro.

Sady é doutor em Teatro e Sociedade pela Università di Roma-La Sapienza. Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e UFF.

O pensador e escritor Darcy Ribeiro / Foto: Divulgação

Sady Bianchin / Foto: Divulgação

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