22/01/2012 07h45- Atualizado em 22/01/2012 07h45
- Artigo de Cristovam Buarque para a revista Oasis
O humanismo tal como surgiu no Renascimento, da fusão do pensamento grego revivificado e da afirmação da primazia do homem sobre Terra, erigiu o homem como um ser distinto do restante da natureza: um ser à parte e dominador. Essa visão não apenas prevaleceu como se viu fortalecida pela onipotência do homem e pelas transformações que ele imprimiu na natureza.
Ao ganhar terreno, esse humanismo, não obstante, foi desumanizando-se. A bomba atômica simboliza por si só o advento de uma civilização esquizofrênica: o homem dominou a natureza, dotando-se de meios tecnológicos cada vez mais potentes, mas deixou-se escravizar por essa mesma tecnologia, que agora estabelece as regras do jogo social, degrada o meio ambiente e agrava as desigualdades.
O futuro incerto de nosso planeta obriga-nos a repensar o projeto humanista, um projeto que, na minha opinião, deveria estar fundado em sete pilares:
Promover uma política planetária – O que foi a cidade-Estado para os atenienses se converteu no Estado-nação para as democracias modernas. De fato, a cidadania – invenção dos antigos gregos que definia o engajamento assumido pelos membros da cidade – foi transformando-se paulatinamente em compromisso em relação ao país inteiro.
A crise planetária atual questiona nossa responsabilidade de cidadão do planeta. Em outras palavras, ela exige engajamento do indivíduo em relação ao futuro da humanidade e da Terra. O novo humanismo que eu preconizo deve mostrar-se sensível à importância de todos os seres humanos e ao sentimento de solidariedade mundial.
Respeitar a diversidade das culturas – No passado, o homem deu mostras de desprezo em relação a seu semelhante, como testemunham o extermínio dos povos indígenas nas Américas, o tráfico negreiro e todas as formas de racismo e de xenofobia que delatam sentimentos de superioridade em relação a outras culturas. Se quisermos construir um novo humanismo, devemos combater o etnocentrismo, tornar nossa humanidade “acêntrica” e respeitosa da diversidade cultural. Temos de apaziguar os conflitos entre as culturas e considerar cada uma delas como uma riqueza em si, cuja interação é superior à soma das partes.
Proteger melhor o meio ambiente – Historicamente, o homem tratou a natureza com arrogância e irresponsabilidade, negando-lhe qualquer valor. Dessa forma, esgotou recursos naturais e alterou o equilíbrio ecológico a tal ponto que o próprio futuro da civilização se encontra ameaçado. Em um planeta maltratado e encurralado, apenas a atividade humana e os preços do mercado geram valor: o valor da árvore mede-se pela madeira que produz, e o animal, pela carne e pelo couro que fornece…
O novo humanismo que eu prego deverá integrar a civilização no equilíbrio ambiental. A produção econômica não pode mais ser unicamente medida em termos dos bens e dos serviços materiais ou do PIB. Deve levar em conta o conjunto dos custos gerados pelo lixo produzido.
Garantir a igualdade de oportunidades – Se o humanismo foi a base do sonho igualitário, o capitalismo exacerbou as desigualdades a tal ponto que a expectativa de vida dos indivíduos varia conforme sua renda. Da minha parte, sonho com um humanismo que garanta a igualdade de oportunidades e a mobilidade social, imponha limites ecológicos contra um consumo que está esgotando o meio ambiente e proteja os mais desfavorecidos.
Valorizar uma produção dominada pelo homem – A valorização do trabalho em detrimento da terra fez do homem um produtor de valores e colocou os trabalhadores no centro do processo de produção. No entanto, esse avanço trabalhou contra o humanismo, quando o valor se transformou em preço fixado pelas forças ocultas do mercado que fogem ao controle do homem. As explicações ocupam o lugar da justiça, a demanda suplanta a vontade e os desejos consumistas, a satisfação das necessidades. Para construir um novo humanismo, devemos reorientar a marcha das nações e do gênero humano para um processo de produção ecologicamente equilibrado que confira valor aos bens não comercializáveis.
O novo humanismo deverá igualmente abolir a escravidão, que continua a subjugar o homem, quando este fica relegado ao papel de mera engrenagem no processo de produção.
Integrar pela educação – O humanismo, na era da industrialização, prometia um futuro de igualdade de renda, graças à economia. Segundo os defensores do capitalismo, o aumento da produção e as leis do mercado deveriam provocar um “efeito transbordamento”, isto é, uma distribuição das riquezas de cima para baixo da pirâmide social. Para o socialismo, ao contrário, a distribuição deveria ser assegurada pelo Estado e pelas leis do planejamento.
Hoje, sob a nova economia do conhecimento e do capital humano, a chave do progresso econômico e da justiça social reside na educação de qualidade para todos. O desafio, para o novo humanismo, consistirá em fornecer para cada criança uma educação de qualidade, independentemente de raça, renda familiar ou local de residência. O “efeito transbordamento” prometido pelo capitalismo não mais virá do mercado, mas de um movimento ascendente induzido pela educação.
O objetivo desse processo, em longo prazo, será a integração de todos os povos do mundo, utilizando todas as técnicas disponíveis de uma rede planetária.
Afirmar a modernidade ética – A civilização industrial caracteriza-se por uma busca insaciável de modernidade técnica e pelo uso de tecnologias em constante renovação. Daí decorre o aparecimento de uma racionalidade econômica que justifica produtos tecnológicos cada vez mais avançados e que deixa de lado os objetivos sociais, relegando assim os valores éticos.
O novo humanismo erigirá, ao contrário, os valores éticos como pedra angular dos objetivos sociais, como fundamento de uma racionalidade econômica que regerá o conjunto das decisões técnicas. As técnicas deverão ser escolhidas em função de normas éticas e estéticas, e não simplesmente em termos de eficácia econômica.
A modernidade técnica definida pela originalidade da tecnologia e do humanismo deverá ser substituída, no novo humanismo, por uma modernidade ética. Deixaremos, por exemplo, de avaliar os transportes em função do número de veículos particulares em circulação, para levar em conta aspectos como rapidez, conforto para os usuários, pontualidade e acesso universal.
Da mesma forma que Einstein, o incrédulo que tratava Deus por “tu” na esperança de subtrair Dele os segredos da criação do mundo, o novo humanismo deve encontrar o modo de construir uma civilização democrática, tolerante e eficaz para a humanidade inteira e para cada ser humano em particular, no respeito da natureza.
Esse modo é o diálogo entre os povos, assim como entre os povos e a natureza. O novo humanismo repousará no diálogo entre as culturas e com a mãe Terra.
- Senador e professor da Universidade de Brasília, Cristovam Buarque foi ministro da Educação em 2003. Dedicou sua ação política especialmente à luta pela alfabetização, pela implantação da reforma agrária, pela melhoria do sistema de saúde brasileiro e das condições de trabalho no Brasil.