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quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Leitura: em voz alta ou em silêncio?

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05/02/2012 08h00 – Atualizado em 05/02/2012 08h00

Por Sônia Maria Ferreira Barrueco

Para responder tal questão, faremos uma breve exposição sobre o ato de ler e os mecanismos que o leitor utiliza para compreender o que lê. Recorreremos a registros históricos da leitura, os quais tratam da dualidade: leitura oral e leitura silenciosa. Essa dicotomia pode ser explicada e relacionada a vários fatos da história da leitura. Além disso, direcionaremos um olhar para as várias facetas que se nos apresentam o processo de ler, como ele ocorre e como ensiná-lo.

Considerando o leitor um indivíduo que estabelece relações sociais com o outro, o conceito de ler corresponde à interação ativa, num eixo de duas partes que une leitor e escritor. Esse é um processo de reciprocidade em que as características de um interagem com a do outro, para construção do significado do contexto mediante a realização dessa atividade. Desse procedimento, ocorrem dois atos distintos e dois agentes que participam desses atos: a operação de escrever (autor) e a operação de ler (leitor); de onde, respectivamente, emerge dois objetos: um concreto e outro imaginário.

Para tanto, para ensinar a ler, precisamos partir das estratégias de leitura. Para compreender o que são estratégias de leitura é necessário situá-las com relação aos procedimentos. Tais procedimentos são as regras, técnicas, métodos, destrezas ou habilidades que formam um conjunto de ações ordenadas e finalizadas, isto é, dirigidas à consecução de uma meta.

Com relação às estratégias de compreensão leitora Solé (1998, p. 70) afirma que:

Se as estratégias de leitura são procedimentos e os procedimentos são conteúdos de ensino, então é preciso ensinar estratégias para a compreensão de textos. Estas não amadurecem, nem se desenvolvem, nem emergem, nem aparecem. Ensina-se – ou não se ensinam – e se aprendem – ou não se aprendem.

Essas definições estão imbricadas no processo em função das ações para a consecução de uma meta. Portanto, para ensinar a ler, as estratégias não podem ser tratadas simplesmente como técnicas precisas ou habilidades específicas, faz-se necessário o uso de procedimentos de tipo geral, para posteriormente partir para situações de leitura múltiplas e variadas.

Nesse contexto, trataremos da etapa de leitura silenciosa, na qual os alunos realizam, sozinhos, as atividades que, anteriormente, efetuaram com a ajuda do professor: dotar-se de objetivos de leitura, prever, formular hipóteses, buscar e encontrar apoio para as hipóteses, detectar e compensar falhas de compreensão. Nesta etapa, ajudas de natureza diversa, podem ser oferecidas ao aluno: textos preparados que o levem a inferir; textos incompletos para concluir; variedade de textos de diversos gêneros com o mesmo tema para que ele possa veicular informação; intertextualização do tema; reconhecimento das marcas lingüísticas do texto e também dos objetivos que esse leitor tem para ler o texto.

Desses pressupostos, duas questões se expõem: a variedade de leituras que um mesmo texto pode permitir e a possibilidade de se ensinar leitura oral e silenciosa. Por um lado, a leitura silenciosa oportuniza o encontro dos interlocutores – autor e leitor – cujo objeto é o texto. No contato do leitor com o texto, por meio da leitura silenciosa, surge uma estreita relação, quase de cumplicidade entre ambos, isto é – autor e leitor. Somente a leitura silenciosa proporciona esse momento ímpar ao leitor, ao mesmo tempo ativa a compreensão do que se lê.

A leitura em voz alta, por outro lado, tem por objetivo a prática de o leitor pronunciar as palavras adequadamente, com clareza, rapidez, fluência e correção, respeitar normas de pontuação com entonação e expressividade. Esse processo dificulta ao leitor um contato restrito com o autor, visto que, a prioridade nesse momento de leitura é as palavras do texto, a linearidade em que elas se apresentam. Isso impossibilita ao leitor compreender e perceber as sutilezas do texto, isto é, a intencionalidade do autor, o assunto, a finalidade do texto, dentre outros fatores que a leitura silenciosa proporciona.

Percorrendo os caminhos da leitura

Dentro da categoria de leitura silenciosa, faremos um breve passeio pela história da leitura, tomando um atalho, que nos levará a um tempo longínquo, conduzido por Manguel, cujos registros nos fez deparar com referências históricas surpreendentes e relevantes. Segundo esse autor, no ano de 383, Agostinho – que os séculos futuros conheceriam como santo Agostinho chegou a Roma, vindo de um dos postos mais avançados do império do Norte da África – faz uma descrição da leitura silenciosa de Ambrósio – inclusive a observação de que ele jamais lia em voz alta, sendo este o primeiro caso indiscutível registrado na literatura ocidental. A leitura de Ambrósio havia sido um ato solitário, embora fosse um leitor extraordinário. Nas palavras de Agostinho (Confessions, VI, 3):

Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua quieta. Qualquer um podia aproximar-se dele livremente, […] quando chegávamos para visitá-lo nós o encontrávamos lendo em silêncio, pois jamais lia em voz alta (Manguel, 1997, p.58).

O ato de ler em voz alta era a norma desde os primórdios da palavra escrita. As palavras na página não apenas se “tornavam” sons quando os olhos as percebiam: elas eram sons. Ler era uma forma de pensar e de falar. No estudo do Corão havia uma série de regras estabelecidas, segundo as quais ler e ouvir o texto lido, tornaram-se parte do mesmo ato sagrado. A regra número nove exigia que este fosse lido “alto o suficiente para que o leitor o escutasse, porque ler significava distinguir entre sons”, afastando assim as distrações do mundo externo. (idem, p.58).

Do mesmo modo, para Agostinho, o método da leitura silenciosa era em sua época algo incomum, sendo a leitura normal a que se fazia em voz alta. Para ele, ler era uma habilidade oral: pregação. Em certa ocasião, angustiado, pela indecisão, furioso com seus pecados do passado, assustado […] momento do ajuste de contas com Deus, Agostinho afasta-se do seu amigo Alípio, com quem estivera lendo (em voz alta), joga-se a chorar sob uma figueira. De repente ele ouve uma voz de criança, cantando uma canção cujo estribilho é tolle, lege, “pega e lê”. Ele acredita que a voz fala com ele; corre de volta onde Alípio ainda está sentado e pega o livro que deixara inacabado, um volume das Epístolas de Paulo. Agostinho diz: “Peguei o livro e o abri, e, em silêncio, li a primeira seção sobre a qual caíram meus olhos”. O trecho que ele lê em silêncio é de Romanos 13: “Revesti-vos do Senhor Jesus cristo, e não vos preocupeis com a carne para satisfazer seus desejos” […] A “luz da fé” inunda seu coração e “a escuridão da dúvida” dispersa-se.

Quando interrogado por Alípio sobre o que o afetara tanto, Agostinho marcou com um dedo a página que estava lendo e fechou o livro, mostra o texto ao amigo. “Indiquei-o e ele leu (em voz alta, supostamente) adiante do trecho que eu lera: Acolhei aquele que é fraco na fé.” Essa admoestação, segundo Agostinho é suficiente para dar a Alípio a força espiritual há muito buscada. Ali mesmo, num certo dia de agosto de 386, Agostinho e o amigo leram as Epístolas de Paulo: um em silêncio, para o aprendizado privado; o outro em voz alta, para compartilhar com sua companhia a revelação do texto. (idem, 1997, p 60 – 61)

Essa passagem descrita pelo próprio Agostinho em Confissões descreve o momento em que as duas leituras – em voz alta e em silêncio – acontecem quase simultaneamente. O conteúdo que aquele texto sugeria era tão importante quanto à forma que era lido, não importava como se realizava a leitura, se oral ou silenciosa, mas, sim, o objetivo que cada leitor buscou para a sua necessidade. Essa estra
tégia de ler um livro é parecida com a leitura que fazemos hoje.

Na metade do século VII, o teólogo Isidoro de Sevilha estava tão familiarizado com a leitura silenciosa que a elogiou como um método para “ler sem esforço, refletindo sobre o que foi lido, tornando sua fuga da memória mais difícil”. Como Agostinho, Isidoro acreditava que a leitura possibilitava uma conversação que atravessa o tempo e o espaço, mas com uma distinção importante: “As letras têm o poder de nos transmitir silenciosamente os ditos daqueles que estão ausentes”, escreveu ele em suas Etimologias . As letras de Isidoro não precisavam de sons. Neste caso, a leitura silenciosa permite a comunicação sem testemunhas entre o autor e o leitor e o singular “refrescamento da mente” na feliz expressão de Agostinho .

Refletindo sobre esses breves relatos históricos, manifestam-se em mim alguns questionamentos levando-me à inquietação, dos quais compartilho com você, leitor, convidando-o a seguinte reflexão: Caso Agostinho não tivesse conhecido santo Ambrósio, teria ele desenvolvido a habilidade da leitura silenciosa? Como um professor, que ensinava literatura e eloqüência aceitaria o desafio desse novo método, mediante a prática costumeira de ler em voz alta de sua época, se não fosse por meio da revelação obtida na leitura das Epístolas de Paulo? Se ele não tivesse interpretado tão sabiamente o fato ocorrido com a criança que cantava a canção reveladora no jardim vizinho, teria ele voltado a ler o livro que havia deixado com o amigo, e da forma como leu, tentando um novo procedimento?

Ao retornarmos dessa viagem pela história da leitura, concluímos que – por meio dos processos de leitura, seja ela oral e/ou silenciosa – o ato de ler funciona como uma etapa intermediária e instrumental que leva ao conhecimento. No entanto, a leitura de textos depende da vontade e interesse do leitor. Para despertar essa vontade faz-se necessário, em casa, o livro entrar para a vida da criança desde cedo. Na escola, depende do professor continuar esse processo, ou iniciá-lo mediante a insuficiência dos hábitos de leitura. Em ambos o caso, cabe ao professor essa tarefa: desenvolver no aluno o gosto pela leitura.

Referências Bibliográficas

BARRUECO, Sônia Maria Ferreira. Avaliando a experiência de formação continuada em língua portuguesa do GESTAR. 2007, 268 f. Capítulo II. A leitura e o ensino da língua: linguagem, discurso e texto. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Campo Grande/MS, 2007.

MANGUEL, A. Uma história da Leitura.Tradução Pedro Maia Soares, São Paulo: Companhia das Letras. 1997.

Sole, Isabel. Estratégias de Leitura, 6ª Ed. Porto Alegre: Artmed, 1998

Leitura: em voz alta ou em silêncio?

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