03/04/2012 15h40 – Atualizado em 03/04/2012 15h40
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
“Há quem proclame o “mito da desindustrialização”. Mal sabem que a encrenca vai além dos problemas criados pelas importações predatórias, danosas à produção corrente e à ocupação da capacidade já instalada. A dilaceração das cadeias produtivas pelo “real forte” e a estagnação dos investimentos só serão reparadas com o aumento dos gastos na formação da nova capacidade, sobretudo, nos setores novos e intensivos em tecnologia”, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, em artigo publicado no jornal Valor, 03-04-2012.
Segundo ele, “o salto de escala e tecnológico das indústrias brasileiras não vai ocorrer sem políticas adequadas que estimulem o mercado de capitais. A experiência histórica demonstra que isso exige a constituição de bancos universais de grande porte, rigorosamente regulados e supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros destinados para o crédito de longo prazo”.
Eis o artigo.
Nos anos 80 do século passado, sob a inspiração de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, as políticas industriais e de fomento coordenadas pelo Estado foram lançadas no rol dos pecados sem remissão. No Brasil, o desenvolvimentismo foi alvejado por maldições e imprecações.
A desorganização financeira e fiscal que se seguiu à crise da dívida externa forneceu combustível para alastrar as chamas da purificação mercadista. O apelo à liberalização geral e irrestrita explicitava o fim do consenso em torno do objetivo comum do desenvolvimento fundado na industrialização. Entre as camadas dominantes, o dissenso neoliberal incluía o desconforto com o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos consagrado na Constituição Cidadã de 1988. A dificuldade de se reconstituir, em novas bases, um objetivo compartilhado foi agravada pelo enfraquecimento da capacidade coordenadora de um Estado financeiramente prostrado diante da crise fiscal e monetária e dos programas impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os “reformistas liberais” brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos:
1) a estabilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado;
2) a abertura comercial imporia disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade;
3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência;
4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente;
5) o gotejamento da renda promovida pela acumulação de riqueza na camadas superiores – auxiliada pela ação das políticas sociais “focalizadas” – seria a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.
Na verdade, a privatização desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. O setor produtivo estatal – num país periférico e de industrialização tardia – funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado:
1) O investimento público era o componente “autônomo” da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de energia e transportes) e corria à frente da demanda corrente;
2) as empresas do governo ofereciam insumos generalizados em condições e preços adequados; e,
3) começavam a se constituir – ainda de forma incipiente – em centros de inovação tecnológica.
Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da economia não se concretizaram. Senão vejamos:
1) a indexação das tarifas e preços das empresas privatizadas produziu um aumento expressivo dos custos dos insumos de uso generalizado e;
2) o investimento em infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando pontos de estrangulamento;
3) as grandes empresas “exportaram” os seus departamentos de P&D e os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros;
4) e iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebrás, foram praticamente desativadas.
No debate em curso sobre a situação da indústria brasileira, há quem proclame o “mito da desindustrialização”. Mal sabem que a encrenca vai além dos problemas criados pelas importações predatórias, danosas à produção corrente e à ocupação da capacidade já instalada. A dilaceração das cadeias produtivas pelo “real forte” e a estagnação dos investimentos só serão reparadas com o aumento dos gastos na formação da nova capacidade, sobretudo, nos setores novos e intensivos em tecnologia. Isto vai demandar, sim, o exercício do “animal spirits” dos dirigentes empresariais, a centralização do capital, agora disperso em empresas sem a escala requerida para participar do atual estágio da concorrência global e a elevação do gasto autônomo do Estado.
O salto de escala e tecnológico das indústrias brasileiras não vai ocorrer sem políticas adequadas que estimulem o mercado de capitais. A experiência histórica demonstra que isso exige a constituição de bancos universais de grande porte, rigorosamente regulados e supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros destinados para o crédito de longo prazo.
O esperado efeito “acelerador” decorrente desse arranjo vai dinamizar os setores já existentes, cuja “proteção” não deve ser concedida sem contrapartidas de desempenho nas exportações, na inovação tecnológica e na substituição de importações. A economia mundial está diante de capacidade de oferta excedente em quase todos os setores e isso vai tornar ainda mais acirrada a conquista de mercados.
Sobre a utilização dos recursos decorrentes da exploração do pré-sal: a avalanche de moeda estrangeira que certamente advirá da exportação de petróleo ameaça tornar incontrolável o vício nativo cevado nas delícias tão sedutoras quanto e viciosas do câmbio valorizado. O ideal para o país detentor de uma riqueza natural abundante é constituir um fundo soberano e aplicar no exterior os recursos gerados pelas exportações, utilizando no âmbito doméstico tão somente os recursos gerados nas vendas internas e os rendimentos obtidos das aplicações no exterior. Esses fundos são genuinamente “fundos de poupança”, poupança de longuíssimo prazo.