19/02/2013 20h37 – Atualizado em 19/02/2013 20h37
Por Francisco Carlos Teixeira
A história de Bento XVI só pode ser compreendida quando se analisam os papéis desempenhados pelos personagens que estiveram ao lado dele, como o arcebispo alemão Georg Gänswein, o “bello Georg”, prefeito da Casa Pontifícia, o mordomo Paolleto Gabriele, o monsenhor Carlo Maria Viganò, ex-governador do Vaticano, e o cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano. O pastor de Cristo alimentou com as próprias mãos os lobos que o cercavam e viu-se, ao final, devorado por seus próprios lobos. A análise é de Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ
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O mundo foi pego de surpresa com o anúncio, em latim, da renúncia de Joseph Ratzinger, Bento XVI, ao pontificado, no último dia 11/02/2013. Alguns ditos especialistas, logo chamados de “vaticanólogos”, apoiados por bispos e cardeais – inclusive aqui no Brasil – correram a declarar que “sinais” – uma expressão bem apocalíptica – já vinham sido dados por Bento XVI. Tratava-se de salvar a face ante um fato de arbítrio absoluto e sem consulta ao corpo da Igreja, inédito desde o final da Idade Média. Ocorre que o “L´Osservatore Romano” – o órgão oficial da Igreja Católica –, na sua edição dedicada à renúncia papal, declarou-se “surpreendido” e o ato papal foi considerado pelo jornal oficial como “desconcertante”. Pouco antes o mesmo jornal declarara – em razão dos escândalos oriundos do Vaticano –, de forma compungida, que o Papa estava cercado de lobos. Quem eram os lobos?
Um passado ardente
A eleição de Bento XVI em 2005 criou, desde logo, uma grande polêmica, em especial pela veiculação mundial das fotos de Ratzinger em uniforme da Juventude Hitlerista (Hitlerjugen/HJ), durante o Terceiro Reich. A própria Igreja, e sua ala conservadora, apressaram-se em justificar a “adesão nazista” do Papa através de dois argumentos de peso. Em primeiro lugar, Ratzinger tinha, então, 14 anos de idade. Acusar alguém, 60 anos depois, de uma escolha feita aos quatorze anos é ilógico e, no limite, cruel. Muitos homens de direita, mesmo fascistas, arrependeram-se e foram, daí em diante, homens dignos. No Brasil mesmo, o vanguardista Dom Helder Câmara foi um militante integralista em sua juventude, antes de assumir, de coração fraterno, a Teologia da Libertação. Logo, condenar o adolescente “Joseph” para atingir o Papa Ratzinger não seria justo. Outro argumento reside na obrigatoriedade de todos os jovens, entre 14 e 18 anos, de pertencerem a Juventude Hitlerista – “Hitlerjugend”.
De fato, em 1936, Hitler ordenou a integração de todas as organizações juvenis, incluindo as “juventudes” católicas e evangélicas, ao “Hitlerjugendbund”. Houve reação e muitos jovens se recusaram, com grande risco pessoal. Daí a publicação de um novo decreto – o “Jugenddienstpflicht” ou Serviço Obrigatório dos Jovens, em 1939 –, já em clima de pré-guerra. Ratzinger pertenceu a “Hitlerjugend” desde 1941, passando para a Wehrmacht, as forças armadas, em 1943. Havia opção? A resposta não é absoluta. Isso depende, é pessoal e julgar é difícil e pode ocorrer grave injustiça. Cerca de 10% dos jovens alemães recusaram aderir a HJ, apresentando razões morais, religiosas ou mesmo físicas. Na Baviera, onde Ratzinger vivia, este número chegou a 20% dos jovens – muitos católicos não aceitaram o “catolicismo Ariano” ( ou Positivo) proposto por Hitler.
Em especial na Baviera, profundamente católica, a oposição passiva de católicos foi bastante grande. A ordem de assassinato de doentes mentais – considerados um “peso morto” para a raça ariana – provocou, em especial, protestos explícitos do clero católico. A “Aktion T4”, como era chamada o programa de eliminação de doentes mentais e de deficientes físicos, chegou até a família Ratzinger quando um primo de Joseph, portador da Síndrome de Down – um entre as 70 mil vítimas -, foi morto por ordem do Estado nazista. Mesmo assim a família Ratzinger calou-se. O bispo de Munster, Clemens Von Galen, no entanto, protestou corajosamente contra os assassinatos, inclusive lendo homilias que denunciavam o horror do regime nazista (Von Galen foi, significativamente, beatificado por Bento XVI em 2006). A partir de 1941 vários mosteiros foram atacados e destruídos por nazistas. Era a ação “Klosterstum”, ordenada por Heinrich Himmler, líder das SS – foi o mesmo ano que Joseph ingressou na Juventude Hitlerista. Foi neste mesma Baviera que jovens, muitos jovens, organizaram uma ampla rede de resistência denominada “A Rosa Branca” – Die Weisse Rose” – , que culminaria na decapitação Sophie (1921-1943) e Hans Scholl (1918-1943), irmãos, cristãos e resistentes por ordem de um tribunal nazista.
Muitos outros mantiveram uma postura discreta, mas sempre que possível sabotavam, descumpriam ou ignoravam as ordens do regime, inclusive acolhendo e protegendo judeus e outras vítimas do regime. Mas, estas são opções de forum íntimo, pertencem a cada um. A maioria dos jovens aceitava a convocação para a Wehrmacht, posto que a recusa fosse crime de deserção, mas recusaram a HJ e a SS, buscando na Wehrmacht uma saída “nacional” e não partidária. A Wehrmacht, que também cometeu terríveis atrocidades, era a força militar nacional; já a HJ e as SS ( e antes as SA) representavam o regime e seu terror. Ratzinger aceitou a ordem de adesão a HJ. Aqueles que recusam perdiam o direito a estudar, frequentar clubes ou associações esportivas ou culturais e eram, frequentemente, hostilizados na escola. Ratzinger conseguiu sua matrícula e prosseguiu em seus estudos, mesmo num tempo de martirização da Igreja. Que Hitler era incompatível com a fraternidade cristã é obvio.
Cristãos como Martin Niemöller, e centenas de padres franceses e holandeses foram exterminados em KZ por protegerem judeus e até comunistas. Outros pagaram com a vida e a liberdade a denúncia do nazismo como inumano como o Padre Bernhard Lichtenberg, preso em 1941 e morto em Dachau neste mesmo ano de 1943. Mas, “Joseph” tinha, então, 14 anos! Estamos frente uma questão difícil e não creio que possamos, aqui, fazer juízos de valor sem viver sob as mesmas condições que informaram as decisões de Joseph. Nós, no Brasil, vivemos uma ditadura recente. Como vivemos então? Quantos fizeram serviço militar? Quantos fingiram não ver o que se passava… Quantos aplaudiram o “Milagre Econômico”? Quantos políticos e ministros da Ditadura – que não eram adolescentes de 14 anos! – estão hoje no Congresso Nacional?
Julgando ações e palavras
Podemos, contudo, fazer um juízo, claro e inequívoco, sobre o Papa Ratzinger, suas ações e suas palavras. Claro que é um conservador, contrário a adoção, por exemplo, de medidas singularmente importantes, como o uso da chamada “camisinha” em áreas devastadas pela aids da África. Mas Dom Eugênio Salles, ou Winston Churchill, também eram conservadores e foram grandes democratas. A questão central sobre o Papa, mais uma vez, é outra: quais suas simpatias políticas e como encarou o Regime Hitlerista? Do jovem Joseph não temos material, cartas ou testemunhos, para afirmar com certeza suas simpatias ou antipatias. Contudo, quando o Papa Ratzinger visitou o Campo de Extermínio de Auschwitz, em 2006, insistiu, de público, numa tese amplamente desacredita pela moderna historiografia sobre o nazismo. Na ocasião, o Papa proclamou, em face de sobreviventes, que o Holocausto “… foi resultado da ação de um grupo de criminosos que abusaram do povo alemão para se servir dele…”
Essa versão da História é inaceitável, em especial para um homem com a formação intelectual de Ratzinger. Os alemães apoiaram, votaram, participaram, foram para as ruas e delataram em massa seus concidadãos judeus ou não, oponentes políticos, ciganos, gays e cristãos, como as Testemunhas de J
eová (que se recusaram a dizer “Heil, Hitler!” – “heil”, salve em alemão, só poderia ser usado para com Deus). Igualar os alemães como suas vítimas é uma ofensa e talvez encubra o próprio desejo de se autodesculpar. Ratzinger foi além: declarou que os alemães foram, eles também, vítimas de Hitler. Assim, tornava-se fácil lançar toda a culpa num pequeno punhado de homens e desculpar as multidões que apoiaram e lucraram com o nazismo e a perseguição dos judeus.
Em especial Ratzinger ofendeu milhões de vítimas do Holocausto ao afirmar que a freira Edith Stein foi uma vítima cristã e alemã dos nazistas. Ora, Edith Stein era uma judia, nascida na Alemanha, convertida ao cristianismo e que, entretanto, mesmo sendo freira, foi morta pelos nazistas. Posto está que a “irmã” Edith não foi morta por ter nascido na Alemanha ou por ser uma religiosa cristã: ela foi morta, em 1942, no campo de Auschwitz, por ser judia! Ao enfatizar sua escolha “cristã” o Papa despreza a natureza racista, antissemita, do seu assassinato pelos nazistas.
A irrelevância do Holocausto para Bento XVI tornar-se-ia obvia três anos mais tarde, em 2009, quando, por decisão pessoal, o papa alemão suspendeu a excomunhão do bispo inglês Richard Williamson, que defendeu publicamente a inexistência da matança em massa de judeus e oponentes do Terceiro Reich. João Paulo II – um polonês que sofreu a ocupação alemã –, em face do escândalo mundial da negação do Holocausto e das afirmações do bispo sobre a veracidade dos chamados “Protocolos dos Sábios de Sião”, excomungou o bispo, impedindo sua pregação, mas Bento XVI o perdoou e reintegrou-o à Santa Madre Igreja. É sobre este Ratzinger, e não sobre o menino “Joseph”, que cabe julgamentos morais. Neste caso, Ratzinger trouxe os lobos para o seu convívio.
De teólogo a senhor dos dogmas
Joseph Ratzinger foi, ou é (não se sabe bem se ele continuará a usar o titulo papal ou apenas o tratamento de bispo emérito), o sétimo papa de origem alemã (há alguma controvérsia aqui) e o primeiro Papa, depois de séculos, a ter sua origem na Sagrada Congregação Para a Fé – a antiga “Santa Inquisição” –, o organismo da Igreja Católica responsável pela manutenção da ortodoxia dos dogmas do catolicismo e, nos séculos XVI e XVII, por milhares de condenações cruéis de dissidentes cristãos e de judeus, mortos em milhares de fogueiras.
A função central da Congregação é a defesa intransigente dos dogmas da Igreja. A maior parte destes tem sua origem na luta contra o Protestantismo – considerado como heresia – conforme o Concílio de Trento (entre 1545 e 1563). Mais tarde, no século XIX, quando a Igreja foi confrontada com a ascensão do Liberalismo e dos Socialismos, e mais importante de tudo, com a luta contra a emergência do Estado Nacional Italiano (que expropriou as terras da Igreja e reduziu os territórios do papa à cidade-estado do vaticano), em 1870.
A resposta do Vaticano foi, então, cabal, com a proclamação, durante o Concílio Vaticano I, em 1870, da Constituição Papal “Pastor Aeternus”, o dogma da “Infalibilidade” papal. Tratava-se de colocar, em questões de fé e de moral, a palavra do papa como verdade absoluta, inquestionável. Da mesma forma, como as palavras sacramentais se realizam pela força de sua verdade mística.
Ratzinger, na direção da Sagrada Congregação Para a Fé, foi um defensor ferrenho de tais dogmas, em especial do conceito de verdade como a própria natureza dos sacramentos, como o batismo, que realiza por si só, o que as palavras pronunciadas pelo sacerdote prometem. Vários teólogos, como Leonardo Boff, por sua vez, asseguram que todas as palavras ditas com amor e fraternidade – inclusive “eu te amo” – possuem o mesmo valor sacramental daquelas pronunciadas por ofício sacerdotal. Neste caso, o amor e a fraternidade possuiriam a força do sacramento. Leonardo Boff, ex-aluno de Ratzinger, foi condenado, então, pelo seu ex-professor ao silêncio “obsequioso” – um basta ao debate no seio da Igreja!
A carreira como guardião do conservadorismo
Desde 1981 até sua eleição, em 2005, Ratzinger exerceu com vigor, e grande conservadorismo, a direção da Sagrada Congregação Para a Fé, de onde desenvolveu, por exemplo, uma ação constante e consistente contra os representantes da Teologia da Libertação e o clero progressista, ou simplesmente humanista e preocupado com as condições imperiosas de homens e mulheres “viverem também no mundo”. Temas como a “fuga” de sacerdotes e de fiéis, o papel dos leigos e das mulheres na condução da Igreja, o celibato dos sacerdotes, as relações com os avanços da ciência e, em especial, o surto de pedofilia que abalou os católicos foram tratados com menor atenção ou, mesmo, desprezo.
Na sua ação como condutor da Congregação Para a Fé, o cardeal Ratzinger voltou-se contra nomes renomados do “aggiornamento” da Igreja, teólogos que buscavam – ante os desafios que afligem a Igreja pós-conciliar (Concílio Vaticano II, 1962-65) – como o Padre Ernesto Cardenal (1925), da Nicarágua, Hans Kung (1928), teólogo alemão que criticava duramente o dogma da Infalibilidade Papal e o monopólio da Cúria Romana sobre o conjunto da Igreja Católica e, ainda, Leonardo Boff (1938), teólogo brasileiro, defensor de uma intensa abertura da Igreja para que fiéis, laicos ou consagrados assumam maiores responsabilidades na condução da Igreja. Em todos estes casos, coube a Ratzinger – mesmo a duríssima e pública advertência de João Paulo II contra o Padre Cardenal na Nicarágua – a condução dos dossiês de condenação.
Cabe destacar que uma das acusações básicas da Sagrada Congregação da Fé contra os teólogos progressistas era imiscuir-se com a política, com a gestão do Reino deste mundo, abandonando ou prejudicando a Igreja e sua dimensão mística. Ora, Ratzinger, impelindo João Paulo II, condenava de forma acerba a ação política de religiosos, como do Padre Cardenal em 1983 (suspenso “Ad Divinis” em 1985). Mas Ratzinger e Woityla calaram-se, agindo no silêncio e colaborando com o governo de Ronald Reagan nas suas ações clandestinas destinadas a desestabilizar os regimes comunistas na Europa Oriental, em especial na Polônia. Ou, ainda, paralisar o apoio das comunidades eclesiais de base aos movimentos antiditatoriais na América Latina, onde milhares de pessoas eram presas e torturadas, inclusive religiosos.
A cegueira em face dos direitos humanos
Na verdade, a Igreja de Ratzinger calou-se sobre a brutal ditadura argentina, sobre a tortura, os sequestros de bebes e os voos da morte – o que explica o desprezo de Cristina Kirchner para com o clero de seu país. O mesmo Vaticano não só calou-se no massacre de opositores durante a ditadura Pinochet, como ainda – em 05/04/1999 – o Cardeal Jorge Medina (1926), chileno, amigo de Ratzinger, pediu, em sigilo, ao governo britânico, em nome do Vaticano, a libertação, por “motivos humanitários”, de Augusto Pinochet, então preso em Londres. Coube a Medina, Prefeito da Congregação do Culto Divino no Vaticano, anunciar em 2005 o “Habemus Papa” que entronizava Ratzinger como Bento XVI. Medina foi, ainda, o reitor da PUC de Santiago por pedido pessoal de Pinochet, que o considerava mais adequado para controlar o movimento estudantil chileno. Tratava-se de substituir no cargo, de forma excêntrica, o cardeal Raul Silva Henriquez, considerado pelo almirante Jorge Sweet Madge como defensor dos Direitos Humanos. Desta forma, Medina ascendeu na hierarquia chilena, tornou-se amigo de Ratzinger e foi seu principal eleitor em 2005.
Em suma, a Sagrada Congregação Para a Fé mostrou-se, sob o domínio de Ratzinger, cega do “olho esquerdo”, participando e dirigindo ativamente toda ação contra a Teologia Progressista e mesmo contra os movimentos sociais no mundo. Outro amigo e correligionário de Ratzing
er, e que faz rápida carreira no Vaticano, é o cardeal de Lima, Juan Luis Cipriani (1943), figura chave na eleição do papa alemão. Cipriani, bispo de Ayacucho no Peru, foi acusado, por inúmeras organizações de direitos humanos, de negar auxílio às vítimas da guerra contra o Sendero Luminoso. Mesmo figuras moderadas, como Mario Vargas Llosa, acusaram Cipriani, duramente, de ocultar os crimes da Era Fujimori e de acusar os parentes das vítimas do Massacre de La Cantuta de “traição à fraternidade” por exigirem a punição dos militares responsáveis pela morte de um professor e nove estudantes universitários em 1992.
Cipriani, que jamais falou sobre os escândalos de pedofilia na Igreja, impediu a organização de um grupo de estudantes gays da Universidade Pontifícia Católica e, por fim, declarou as organizações de luta pelos direitos humanos como “esa cojudez”, numa linguagem muito pouco canônica. Foi neste ambiente, povoado de lobos em hábitos negros, no interior da burocracia do Vaticano, que Ratzinger construiu seu caminho para o papado.
Um papa traído?
A mídia internacional, principalmente aquela informado pela hierarquia católica, buscou, após a perplexidade inicial, atribuir ao estado de saúde debilitado de Ratzinger as razões da renúncia. Ora, tal motivação deu origem, de imediato, a dois questionamentos: de um lado, Ratzinger sempre se declarou contrário ao instituto da renúncia de membros da hierarquia. Assim, aconselhou João Paulo II a não aceitar a renúncia do chamado Papa Negro, Peter Hans Kelvebach, superior da Ordem dos Jesuítas, reafirmando, mesmo no severo e doloroso estado de saúde do jesuíta, que o cargo era uma “prova divina” (Kelvebach ficou no cargo até sua inaptidão em 2008). Da mesma forma, Ratzinger se opôs a incorporação do instituto da renúncia nas Ordenações Jesuíticas (datada de 1540). Ele mesmo insistiu que João Paulo II, dolorosamente enfermo, se mantivesse no cargo. Tudo isso gerou o comentário ácido – “você não desce jamais da Cruz” – do cardeal Stanislaw Dziwiz, secretário de João Paulo II.
Por outro lado, constatou-se, em especial depois da última missa do Papa, celebrada em 14/02/2013, que Ratzinger não aludiu a sua saúde como causa básica da renúncia. Bem ao contrário, fez um sermão político, inédito e duro: criticou os “hipócritas” na Igreja, as cisões internas e “aqueles que desfiguram o rosto da Igreja”. Frente tantos desafios, o papa mostrou-se incapaz de controlar e varrer, nas suas próprias palavras, “o lixo” que se acumula na Sede Santa. Ora, quem são os “hipócritas” e qual é o lixo?
Como Ratzinger (até o momento, final de fevereiro de 2013) não nomeou os seus traidores, o clero externo aos meandros e nichos recônditos do Vaticano, bem como os milhões de fiéis, ficaram sem saber a quem o papa condenava. Claro, a mídia, ainda uma vez, voltou para o amplo escândalo, que em 2012 abalou o Vaticano.
O VatiLeaks
O escândalo, iniciado pela publicação do livro do jornalista Gianluigi Nuzzi – “Sua Santidade, as cartas secretas”, 2012 – mostrava, à luz do dia, uma intensa e mortal luta pelo poder no interior do Vaticano. O Papa, considerado um “intelectual”, absorto em seus estudos e em sua música (é um amante apaixonado de Mozart), conservador e antimodernista, deveria ficar isolado, longe da administração e da política cotidiano da Igreja. Estas “atribuições” ficariam centralizadas nas mãos do poderoso cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, um produto típico da burocracia romana. As grandes questões, como as nomeações para a hierarquia, as finanças e a previsível e próxima sucessão deveriam estar longe do gabinete do Papa. É neste contexto que surgem duas questões: de um lado, Nuzzi utilizou-se de documentos verdadeiros, autênticos e, sem dúvida, sigilosos. Como tais documentos chegaram ao jornalista? De outro lado, qual a razão do vazamento?
Desde logo o gabinete do Papa, a sua falada “Família Pontificial”, estava no centro do vazamento. Havia traição. Esta “família” reunia, e ainda reúne, uma gama heterogênea e estranha de pessoas. Estranha até para a tradição do Vaticano. Dois homens eram o núcleo central das relações do Papa com o mundo: de um lado, Paolo Gabriele, mordomo do Papa, com acesso direto a todos os aposentos e documentos do Papa. Paolo, ou “Paoletto”, mesmo depois de preso (a partir de maio de 2012) sempre protestou lealdade e amizade, e mesmo carinho filial, ao Papa. O outro homem forte, desde os tempos que Ratzinger era cardeal de Munique, era o alemão Georg Gänswein, ordenado padre em 1984, depois de ser cozinheiro e professor de ski nos Alpes, com uma vida amorosa pré-hábito conhecida. Gänswein tornou-se, entretanto, o braço direito do Papa. Jovem (nascido em 1956) entre anciões, é chamado, na Cúria, de “Il bello George” e foi a inspiração de Donattela Versace para sua coleção de moda de 2007.
A estes se uniam quatro irmãs e leigas, consagradas, que cuidam dos serviços pessoais do Papa. Gabriele e Gänswein eram amigos e conviviam diariamente com o Papa. Gänswein vivia – e acompanhará o Papa para seu retiro depois de 28/02/2013 – no Vaticano, enquanto Gabriele residia na Via Porta Angelica, no próprio Vaticano, a uma caminhada dos aposentos do Papa.
Um ‘palheiro insondável de escândalos’
Ora, por que Gabriele traiu? E, o que é fundamental, o que foi a traição? Durante o julgamento do mordomo papal, este insistiu, e de forma desconcertante, de que não traiu. De fato copiou cartas e relatórios secretos desde 2010, mas o fez para proteger o próprio Papa. Na verdade, em acordo com Gänswein, teriam entendido que o papa estava isolado das decisões e do “lixo” que inundava o Vaticano. A burocracia comandada por Tarcisio Bertone, o cardeal secretario de Estado do Vaticano, conseguira criar uma muralha burocrática capaz de esconder uma gestão, desde há muito tempo, absolutamente corrupta.
Os pontos principais, o conteúdo dos documentos, não foram questionados no tribunal, e nem o próprio Gabriele quis falar. O julgamento centrou-se no conceito de “roubo” e “invasão de privacidade”, e o conteúdo dos documentos, por isso mesmo, não seria revelado. Contudo, na casa da Via Porta Angelica foram encontradas 82 caixas de documentos pessoais do Papa – além de uma pepita de ouro, uma edição histórica e valiosa da “Eneida”, de 1581, e um cheque de 100 mil euros dados ao Papa pela Universidad Catolica de Santo Antonio de Murcia (Espanha), em Cuba. Não só Paolo Gabriele roubou os documentos, como também quis garantias de ter meios financeiros para sobreviver a uma crise no Vaticano.
Gabriele foi o único acusado; a “Família Pontificial”, e em especial o “bello Georg Gänswein”, com suas quatro leigas consagradas, foi poupado. O mordomo manteve-se em silêncio, pediu perdão e reafirmou a lealdade ao Papa. Enquanto isso, Tarcisio Bertone, numa declaração insólita, declarou-se atento para que o réu, a promotoria e o próprio tribunal não “criassem condições lesivas ao vaticano” (El País, 09/06/2012). Soava como uma ameaça. Era uma ameaça negociada – logo após a condenação Paolo Gabriele foi perdoado pelo Papa e colocado em liberdade. Manteve o seu silêncio. No início de janeiro de 2013, já tomada a decisão da renúncia, o Papa nomeou Georg Gänswein arcebispo e secretário prefeito da Casa Pontifícia. Tratava-se, agora, de blindar o “bello Georg” contra qualquer vingança da Cúria, em especial após a sua renúncia.
O “lixo” do Vaticano
Paolleto Gabriele, o mordomo, um leigo – sem a proteção dos títulos eclesiástico e o único condenado – causou lágrimas ao Papa. Ambos eram verdadeiramente amigos. Por que então traiu o Papa? Ou não foi traição… O vazamento, feito através do livro de Nuzzi, teria sido a última cartada da “Fam
ília Pontificial” para romper o bloqueio em torno do Papa e criar dificuldades contra o todo poderoso Tarcisio Bertone e os demais cardeais da Cúria. O papa, com certeza, não sabia da conspiração elaborada ao seu favor, que provocaria a ira dos cardeais da Cúria e a exigência de punição da “Família”. Ratzinger pode salvar Gänswein, mas entregou Paolleto, como antes entregara um outro amigo: o chamado “banqueiro do Papa”.
Qual o conteúdo, tão terrível, dos arquivos de Paolo Gabriele e que poderiam abalar o poder da burocracia da Cúria? Os dossiês, que o próprio Papa chamou de “lixo do Vaticano”, derramava-se sobre temas obscuros e, mesmo, assustadores. Em primeiro lugar uma terrível história, velha de 30 anos: o desaparecimento da menina Emanuela Orlandi, de 15 anos, em 1983. Emanuela, uma bela adolescente, era filha de um funcionário da Casa Pontifícia. A menina desapareceu no próprio Vaticano e seu pai teria tido acesso, pouco antes, a documentos que comprovavam que o chefe da máfia, Enrico de Pedis, possuía contas e fazia lavagem de dinheiro através do Banco Ambrosiano, que cuidava das finanças do Vaticano. Contudo, há outras versões, ainda mais apavorantes. Uma grande “coincidência”, além de Gänswein ter assumido a Casa Pontifícia, com acesso aos seus arquivos, é o fato de que o mordomo Gabriele residia, até sua prisão, na mesma casa da Via Porta Angelica onde residira a família de Emanuela Orlandi. O mafioso De Pedis foi enterrado, com missa solene, na Basílica de Santo Ambrosio, ao lado de papas e cardeais.
As finanças do Vaticano
Em 2012, monsenhor Carlo Maria Viganò, nomeado em 2009 como Governador do Vaticano, por decisão pessoal de Bento XVI foi encarregado de fazer uma “limpeza” nas finanças do Papado. Tratava-se de moralizar licitações, compras, o destino de alugueis e de rendas devidas à Igreja. Aos poucos Viganò viu-se num emaranhado de interesses e de ocultamentos que invariavelmente levavam a Tarcisio Bertone e alguns dos cardiais controladores da Cúria, que acusaram Viganò de incompetência e, mesmo, de corrupção. O Papa acaba por ceder às pressões da Cúria e, em 2011, “exila” Vinganò, nomeando-o núncio apostólico em Washington, o que o priva de qualquer ingerência nos negócios papais. Duas cartas do Monsenhor são publicadas, confirmando as acusações de corrupção.
O caso Viganò abre caminho para um escândalo ainda mais grave, agora envolvendo Ettore Gotti Tedeschi, um ex-presidente do Santander Comsumer Bank e católico praticante, membro da ultraconservadora Opus Dei, nomeado, como homem de confiança do papa, como presidente do IOR/Instituto de Obras Religiosas, o nome do banco do Vaticano. No esforço de colocar em dia as finanças do Vaticano – pressionado pela Lei 231/2007, da Itália, obrigando à observação das regras da União Europeia contra lavagem de dinheiro – faz com que o banqueiro exija das autoridades da Cúria a revelação dos titulares de centenas de contas secretas, numeradas, que se serviam do banco do Vaticano para entrar no sistema bancário internacional. A descoberta de Tedeschi é assustadora: um número relevante de contas pertencia a Máfia italiana, incluindo aí Matteo Messina Denara, o chefe da Cosa Nostra na Sicília. Outras contas eram de políticos italianos – cujos nomes não foram revelados – e de celebridades que buscavam fugir aos impostos. Algumas eram de religiosos, que não podiam, com certeza, explicar a origem dos recursos postos em suas contas.
Mais uma vez Tarcisio Bertone estava por trás da oposição ao “banqueiro do Papa”. Com um passivo pesado, envolvendo mortes e prisões em torno das finanças papais (como no Caso Ambrosiano), Tedeschi procurou garantir sua segurança. Coletou dezenas de documentos, cartas e e-mails envolvendo políticos italianos, empresários e mafiosos com as finanças da Cúria Romana, num total de 47 detalhados arquivos. Os documentos de Tedeschi comprovaram uma amplas e longevas operações de lavagem de dinheiro no interior do Vaticano.
Oficialmente o Vaticano reagiu com “perplexidade e assombro”, negando conhecer quaisquer contas secretas. Em seguida, no seu melhor estilo, o cardeal Bertone declarou as acusações de Tedeschi produto de uma conspiração “judaico-maçônica”, como se ainda vivêssemos no regime de Salazar ou Franco. Bertone, em seguida, abriu uma ampla frente de ataque contra Tedeschi, indo de um diagnóstico de desequilíbrio mental até ser, o próprio Tedeschi, o mentor de toda a corrupção. O banqueiro do Papa foi, então, demitido por “incompetência”.
Somente em 15/02/2013 o Papa, em um dos seus últimos atos, nomearia o financista alemão Ernst Von Freyberg, um administrador de um estaleiro que produz navios de guerra, para substituir Tedeschi. As autoridades italianas, envolvidas através de contas secretas de financiamento dos partidos políticos e dos próprios políticos calaram-se. Bertone continuou falando pelo Papa, que qualificou, em entrevista, como ”(…) um homem manso que não se deixa intimidar”. Por ironia, será o cardeal Bertone, nascido em 1934, um salesiano com uma carreira típica da Cúria Romana, nomeado secretário de Estado do Vaticano por Bento XVI, em 2006, e o atual cardeal Camerlengo, que responderá pelo Vaticano a partir de 28/02/2013.
Enfim, este pastor de Cristo que alimentou com as próprias mãos os lobos que o cercavam viu-se, ao final, devorado pelos seus próprios lobos.
Francisco Carlos Teixeira é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Publicado em ANPUH-Brasil – Associação Nacional de História
Colaboração: Carlos Monteiro Alves