18/10/2014 16h45 – Atualizado em 18/10/2014 16h45
Fonte: Brasil de Fato
Quando a edição nº 607 do Brasil de Fato estiver nas bancas, os combatentes curdos de Kobane, cidade curda da Síria que faz fronteira com a Turquia, podem estar todos mortos, após a heroica resistência aos jihadistas do Estado Islâmico.
Tal acontecimento provoca muitos questionamentos. De fato, por qual motivo, real e verdadeiro, tanto o governo regional curdo, liderado por Barazani, quanto o governo xiita de Bagdá e ainda o comando da aliança anti-Estado Islâmico, chefiada pelos EUA, pouco fizeram para impedir que o cerco a Kobane se transformasse em um massacre?
A resposta não é simples, já que o cenário regional é extremamente complexo com a Síria de Assad que sofre os efeitos de uma guerra civil planejada no exterior, sem que se consiga a queda do regime de Damasco.
O próprio Iraque, por conta do posicionamento das lideranças xiitas, que representam 60% da maioria do povo iraquiano, preferiu ir em direção da catástrofe institucional no lugar de dividir com os sunitas o gerenciamento do Estado e de sua economia, totalmente dependente da exploração do gás e do petróleo.
O Irã, apesar das mudanças introduzidas pelo novo presidente Rohani sente ainda os efeitos das sanções e, sobretudo, da política de perseguição política, diplomática e geoestratégica promovida pela Arábia Saudita, Estados do Golfo e, sobretudo, pelos EUA.
A Turquia, que já renunciou à pretensão de ser um rebaixado país da União Europeia, tenta, agora, a todo custo, se garantir no lugar de primeira nação árabe no Oriente Médio, ao realizar uma aliança econômica e militar oculta com Israel. No mesmo sentido, o governo turco é o fiel executor da estratégia dos EUA, tentando, assim, ganhar mais autonomia na guerra civil síria apoiando os homens do Estado Islâmico que representam o novo sujeito político do Iraque.
Para ligar os pontos das diferentes situações políticas e militares nessa complexa região do mundo, realizamos uma entrevista com o analista político Alessandro Perri, que por estar em Istambul pôde aclarar e desvendar alguns mistérios políticos relacionados à “questão curda”, ao futuro do Iraque, ao atual contexto na Síria e às confusas intenções de Obama e dos generais do Pentágono.
Brasil De Fato — O Partido dos Trabalhadores Curdo (PKK) e outras entidades denunciaram a “limpeza étnica de baixa intensidade” que foi realizada contra o povo curdo durante quase 15 anos. Por qual motivo os EUA e os países da Otan diziam que nada sabiam?
Alessandro Perri – Desde o início da década de 1980, todos os governos dos países da Otan sabiam que tipo de atividades os grupos especiais do exército turco, dos serviços secretos, desempenharam juntamente aos paramilitares para reprimir a rebelião do povo curdo, liderada pelo PKK, que havia promovido um amplo movimento de guerrilha urbana e rural no Curdistão. Por isso, a repressão foi articulada em termos de deep State, ou seja: o Estado turco ao criar as diferentes estruturas da contraguerrilha lhe conferia, também, uma autonomia operativa que determinou a criação de um Estado no Estado. Por isso, os militares e os paramilitares puderam criar as death lists com as quais eliminavam militantes e simpatizantes da causa curda, fazendo, inclusive, desaparecer seus corpos.
De que forma a justiça do dito “Estado de Direito” turco conseguiu desvendar o papel dos paramilitares?
Em 2007, a organização ultranacionalista Ergenekon foi acusada de terrorismo, por isso, os juízes abriram uma ampla investigação, durante a qual Abdülkadir Aygan e depois Adil Timurtas admitiram que integraram o grupo paramilitar Jitem que “trabalhava” com as listas da morte.
A heroica resistência dos curdos em Kobane contra os batalhões do Estado Islâmico vai recolocar a “questão curda” na ordem do dia, tal como aconteceu em 1915, na Conferencia de Paz de Paris ou será possível encontrar uma solução sem transformar a questão curda em mera utopia?
O antigo projeto nacionalista de unificar todos os curdos em uma única nação continua uma utopia. O PKK, por exemplo, agora aposta mais na organização das comunidades através da implementação de formas de governo participativo, chamado também de “autogoverno-comunitário”. E nesse sentido a experiência que o PKK e o PYD (Partido de União Democrática) realizaram em Rojava com o respectivo “Manifesto do contrato social de Rojava”, foi, de fato exemplar. Por isso, o líder tradicional dos curdos do Iraque assinou uma tácita aliança com os EUA e com o governo turco de Erdogan – a quem vende o petróleo de Mosul, portanto do Iraque – até mesmo para marcar um maior distanciamento político em relação ao PKK. Portanto, hoje, entre os curdos há uma disputa pela condução política e, consequentemente, para decidir como combater o Estado Islâmico.
Uma vez eleito, o líder islâmico Tayyip Erdogan manteve inalterados os acordos econômicos e, sobretudo, a cooperação militar com Israel. Ao mesmo tempo, na campanha eleitoral, esbravejou contra o sionismo por impedir a criação do Estado palestino. É uma contradição ou uma forma de manipular o eleitorado islâmico turco e o mundo árabe?
A verdade é que as relações com Israel nunca foram postas em discussão, inclusive durante o governo de Necmettin Erbakan, que é um líder islâmico muito mais radical do que o atual presidente turco. Por outro lado, os governos islâmicos do AKP sempre foram populistas, no sentido de se mostrarem agressivos, machistas e de estarem prontos a lutar contra “os poderes ocultos”. Um marketing político muito bem realizado para conquistar e iludir os eleitores com a sensação de estarem protegidos pelo “Grande Pai dos Turcos”. Além disso, o AKP é um partido islâmico que, oficialmente, deve defender a Palestina, que, historicamente integrou o Império Turco de 1516 até 1918.
Em maio, Erdogan não atacou o Estado Islâmico porque os jihadistas haviam sequestrado 50 turcos em Mosul. Em setembro, admitiu que a derrota do Estado Islâmico reforçaria o poder de Assad na Síria. Os EUA e a Otan nunca condenaram o colaboracionismo da Turquia com o Estado Islâmico. Afinal, essa realidade esconde objetivos geoestratégicos que os EUA não podem ainda revelar?
Para os EUA, o grande problema é o futuro do Iraque, já que a maioria xiita não pode ser totalmente desconsiderada. Por outro lado, a Casa Branca tem apenas a palavras de Barazani e não de todos os líderes do Conselho do Curdistão. Mais complicada é a situação na frente sunita, visto que para o seio do Estado Islâmico confluíram todos os adeptos de Saddam e, portanto, do Partido Baath, que não é fundamentalista e tão pouco se converteu ao islamismo. Portanto, tudo se mantém no stand by.
Mas o imobilismo do exército turco ao longo da fronteira e as atividades do serviço secreto militar (MIT) evidenciam um mal disfarçado colaboracionismo com o Estado Islâmico. Por qual motivo?
Se considerarmos que a experiência do “manifesto do contrato social das populações de Rojava” foi uma opção política revolucionária que deu certo e que rompeu com a manipulação midiática dos homens do AKP, é evidente que o presidente turco, Erdogan, apoia o Estado Islâmico, porque com a queda de Kobane ficaria inviável, também, a proposta de autogoverno das comunidades curdas. De fato, Erdogan vetou a criação de um corredor humanitário ao longo da fronteira com a Síria para impedir que o PKK ajudasse os irmãos curdos-sírios, atualmente sitiados pelos batalhões do Estado Islâmico. Afinal, uma vitória do Estado Islâmico sobre os curdos da Síria e do Iraque em Kobane é de fundamental importância para o governo turco redimensionar em termos políticos e no Oriente Médio o futuro da questão curda. É claro que os EUA e os países da Otan apoiam a estratégia de Erdogan.
O Estado Islâmico sustenta suas atividades militares com o roubo do gás da Síria e do petróleo do Iraque, graças à colaboração das empresas turcas que administram os dutos até os terminais do porto de Ceifan, os bancos do Qatar e uma série de empresas fantasmas que oficialmente compram o gás e o petróleo que, na realidade, permanece na Turquia. Por qual motivo a Opep, o mercado e os EUA ficaram calados, tendo em conta que quando os jihadistas de Misurata, na Líbia, tentaram vender petróleo logo a Sexta Frota interveio?
O Estado Islâmico, inicialmente, vendia o gás e o petróleo a preços de banana, quase 30% do valor fixado pela Opep. Depois, para evitar reações por parte do mercado, aumentou para 50%, inclusive porque o grande comprador é o governo da Turquia, que tem uma enorme necessidade de gás e de petróleo. Segundo algumas fontes da oposição turca, as vendas alcançaram quase 10% do consumo nacional turco. É claro que também Obama fechou os olhos, visto que desta forma, a Turquia ficava fortalecida na região em função de sua relação privilegiada com os homens do Estado Islâmico.
Caso a guerra contra o Estado Islâmico continue, os EUA poderão impor a divisão do Iraque com a formação de três novos Estados étnicos e religiosos?
Isso significaria uma vitória estratégica dos EUA em todos os sentidos. Mas para isso seria necessário desativar por completo a estrutura de poder da maioria xiita e ao mesmo tempo desarticular as lideranças xiitas da influência iraniana. Por outro lado, o regime do presidente da Síria, Assad, deveria estar em pedaços, algo muito difícil de acontecer visto que Assad conseguiu contornar os ataques dos grupos jihadistas e agora passou ao contra-ataque.
A volta dos caça-bombardeiros dos EUA e dos países da Otan no céu do Iraque e uma eventual derrota do Estado Islâmico pode favorecer o ataque à Síria – como desejaria a Arábia Saudita e Israel – para depor o governo de Assad e colocar no poder uma “junta de salvação nacional” totalmente controlada pelo Ocidente?
A deposição de Assad por via militar é uma previsão muito arriscada, visto que a guerra civil não provocou os efeitos planejados. Por outro lado, os países da Otan, ao bombardear novamente o centro do Iraque para destruir o Estado Islâmico sem obter resultados tangíveis, tornou essa aliança bastante impopular. Um contexto que, nesse momento, realça o papel político dos homens do partido Baath e de todos aqueles que apoiaram Saddam. Hoje, uma segunda tentativa militar para depor Assad tem um preço político muito alto, inclusive porque se deve ter em conta o peso político e militar que a Rússia e o Irã, agora, detêm na região. Não são mais simples espectadores como em 2011.
Nesse contexto qual será o papel do Irã, que também tem problemas com a minoria curda?
O Irã de hoje não é mais o Irã de Ahmadinejad. Muitas coisas mudaram com o novo presidente Rohani que abriu a venda do gás aos países da União Europeia, aliviando a pressão dos EUA que continuam exigindo o fechamento de todos os laboratórios de processamento de urânio. Porém, as mudanças na política econômica não alteraram o projeto estratégico do Irã que quer continuar a ser o país xiita mais forte e importante da região. Por isso, Rohani apoia os defensores curdos de Kobane e garantiu a Assad um apoio incondicional em caso de ataque. É claro que Assad está avaliando a situação. De fato, o governo de Damasco não quer entrar em uma nova guerra agora que começa a ter a quase certeza de estar saindo do túnel da subversão jihadista.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.