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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Outra Educação, além da monotonia acadêmica

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06/02/2015 11h27 – Atualizado em 06/02/2015 11h27

Fonte: Carta Capital

“Até então, eu me via trabalhando como designer, mas Cuba me fez virar jornalista… ao menos por alguns dias. Viajei até lá para trabalhar num projeto artístico de fotografia e vídeo com Daniel Castro, para quem eu já havia trabalhado em São Francisco, nos EUA. Entretanto, de uma hora pra outra nos vimos num trabalho jornalístico entrevistando várias pessoas, na frente e atrás das câmeras.

“Numa noite, encontramos dois jovens estudantes cubanos que toparam nos abrir portas para fotografarmos alguns moradores. O que eles não sabiam é que nós também entrevistamos cada um deles, perguntando coisas sobre a situação de Cuba e como isso afetava as suas vidas. Conhecemos gente que não via seus filhos há anos, desde que eles tentaram fugir da ilha num barco. Conversamos com dançarinas exóticas apaixonadas por Fidel Castro e com pessoas que afogavam suas mágoas em rum.

“Entrevistar pessoas e perguntar-lhes sobre suas opiniões políticas não é uma coisa que as autoridades cubanas gostam de ver… Pouco a pouco, uma paranoia começou a tomar conta de nós: toda vez que um policial se aproximava, os dois jovens cubanos precisavam mostrar seus documentos de identificação. E se alguém for preso, caso eles nos descubram? E se nós formos embora, publicarmos as entrevistas online e a polícia ficar sabendo quem critica o regime? Passou. Os vídeos que gravamos serão apresentados em breve junto a uma exposição de fotos nos EUA. E, assim espero, mais pessoas entenderão que o embargo a Cuba não está ajudando ninguém.”

Fabian Sixtus Körner é um journeyman. E o que ele acabou de nos relatar espelha a jornada que essas pessoas escolhem viver, cheia de imprevisibilidades e também de desenvolturas. No século XIV, eram comuns na Alemanha jovens que deixavam suas casas e viajavam pelo mundo por três anos e um dia, a fim de se desenvolverem como artesãos trabalhando somente por comida, hospedagem e transporte para o próximo destino. Hoje em dia, a tradição do journeyman é mantida acesa por jovens como Fabian, que viajou durante dois anos e três meses e trabalhou como designer, arquiteto e fotógrafo (para além do eventual job como jornalista) em lugares tão distintos quanto China, Egito, Etiópia e Cuba.

Conheci essa história depois de uma ótima conversa com a Luah Galvão e o Danilo España, que idealizaram o Walk and Talk como uma volta ao mundo em busca do que move, inspira e motiva. Num desses encontros inesquecíveis típicos das viagens, eles se depararam com um journeyman no meio de uma praia na Guatemala. Arretados, acabaram dando uma de cupido e fizeram a ponte entre ele e uma australiana que havia resolvido viver por ali desde que conhecera aquela belíssima paisagem. Recentemente, veio ao mundo um journeybaby.

Como poderíamos nos (re)apropriar deste esplendor das jornadas de aprendizagem? A tradição do journeyman é uma imagem pulsante que caminha nessa direção. Outro exemplo é o UnCollege, um experimento educativo de autoaprendizagem recém-chegado ao Brasil e cuja base por aqui é em Ilhabela – SP. O Gap Year, programa de um ano oferecido pelo UnCollege, é estruturado em quatro etapas que conformam uma grande jornada: Viagem, Lançamento, Estágio e Projeto. Todo esse percurso é imbuído de um espírito de desafio, permeado pela curiosidade e repleto de interações e imprevisibilidades. Trata-se de uma descrição excelente para a aprendizagem, ou para o viver-aprender.

Nesse sentido, será que jornada e aprendizagem seriam equivalentes? No processo do doutorado informal, entendo que a jornada de aprendizagem pode ser um caminho especialmente valioso para, além de suscitar algumas respostas, inaugurar novas perguntas. Lucas Favaretto, por exemplo, resolveu sair Pelo Mundo de Magrela e conhecer o sul do Brasil pedalando. Foram 86 dias de subida, descida, pouso, alimento, carinho, verdade, amizade, sorrisos, buzinas, abraços. Minha amiga Thaiane Moregola também escolheu a bicicleta como instrumento de reflexão, e ousou ser Buscante do seu sonho de redescobrir o mundo por outra perspectiva.

Se uma jornada não precisa ser do herói (ou talvez heróis sejamos todos), também não precisa significar necessariamente viagem. Como são as jornadas que escolhemos e criamos para nossas vidas?

Quando alguém toma consciência de que está numa jornada, dá mais valor para as interações e os diálogos que surgem no meio do caminho. Afinal, esses momentos sempre podem se tornar indispensáveis oportunidades de desenvolvimento para os confrontos que aguardam nosso herói. Paul Feyerabend, em seus Diálogos sobre o Conhecimento, dá vida a Gaetano, um jovem tímido que tem o ar de quem escreve poesia, e é este personagem que alerta a todos a respeito da monotonia intelectual que alguns doutores e acadêmicos insistem em reproduzir. Gaetano, então, salienta que houve um tempo em que se nutriam relações pessoais com os sábios, ao invés de somente citar os autores clássicos nas teses e dissertações. E continua: “não creio que exista hoje relação pessoal análoga, o que há é uma forte pressão pessoal para o conformismo e, sobretudo, em vez da conversação viva que Platão queria, temos frases vazias combinadas de maneira esquemática”.

Pois bem, digamos a Gaetano e a Feyerabend: essas relações e conversações vivas estão sendo resgatadas e, acredito, mais rapidamente fora dos domínios da universidade do que dentro dela. A mentoria é um tipo de abordagem que reflete esse resgate. Um mentor é um parceiro de jornada, alguém que não se restringe às tentativas de impessoalidade do ambiente acadêmico. Por isso, é uma relação afetiva, amorosa, educativa. Não há uma pretensão hierárquica ou qualquer tipo de subordinação entre o mentor e o mentorado. É mais aprendizagem mútua (sim, o mentor também está ali para aprender!) do que ensino.

Nos percursos de doutorado informal, a mentoria é uma possibilidade muito interessante. Em outras palavras: se você encontrar uma pessoa que admira e sentir que de alguma forma ela poderá te ajudar no seu processo, convide-a para uma conversa e veja no que dá. Pode me ensinar sua arte? É o que André Stern pergunta para um luthier que encontrou na Suíça, no documentário “Ser e Vir a Ser” (“Being and Becoming”, no original em inglês), sobre desescolarização. Posso te mostrar como faço, mas não posso te ensinar nada foi a resposta que ele ouviu. Iniciou-se uma frutífera relação de mentoria – isto é, de aprendizagem.

Essa postura de não ensinar, mas aprender junto tem muito a ver com desescolarização. No caso, de adultos. E é justamente isso que o doutorado informal pode propiciar. Clara Bellar, diretora do filme, fez um desabafo após uma exibição em São Paulo: “quando eu conheci adultos que não foram escolarizados, eu fiquei com inveja, de tanta autoconfiança que eles demonstram! Chega até a agredir. Eles são tão fortalecidos, tão seguros de si”! A jornada do doutorado informal é, no limite, um trajeto de fortalecimento humano, e a heteronomia acarretada pela mentalidade escolar vai sendo pouco a pouco encurtada para dar lugar à autonomia do ser que quer vir a ser.

Sistemicamente, criar empodimentos de aprendizagem em adultos e crianças significa pintar um novo mundo com cores diferentes daquelas diagnosticadas por Ivan Illich, quando ele diz que não apenas a educação, mas a própria realidade social tornou-se escolarizada.

O doutorado informal passa a representar, a partir das suas aproximações com as jornadas de aprendizagem e a desescolarização, mais um processo do que uma ação pontual ou um projeto. Passa a ser um jeito de viver-aprender. Ainda assim, pra mim, existe uma necessidade de haver um lado mais sistemático que trabalha com ciclos recursivos de entregas: se, antes, eu consideraria meu doutorado informal como finalizado após entregar o que me comprometi (um livro, produto, serviço, evento, curta-metragem etc), agora minha compreensão caminha no sentido de considerar esse marco apenas como o primeiro passo de uma espiral.

À medida que me reconheço em minha autonomia e deixo fluir minhas paixões, este não é um processo que costuma parar. Haverá outras entregas, e acredito que o ritmo ou a pulsação são importantes – como numa sequência de Us encadeados, numa hora estou num ciclo de aprofundamento, e noutra, num ciclo de entrega ou de realização.

No livro Mapeando Diálogos, de Marianne Mille Bojer e outros autores, há uma compreensão mais específica sobre as jornadas de aprendizagem que pode ser particularmente útil como ferramenta num ciclo de aprofundamento: aqui, elas significamjornadas de um lugar para outro com o objetivo de explorar e experimentar o mundo em primeira mão e têm uma relação forte com a criação de empatia e com princípios do diálogo.

Numa típica jornada de aprendizagem, os participantes são convidados a se sentar em pequenos grupos para conversar com os atores locais, buscando entender sua realidade. Escutam não apenas com a mente aberta, mas também com o coração e a vontade abertos. Após a visita, escutam as perspectivas de cada um e, por meio da conversa, chegam a uma compreensão mais profunda e a um quadro mais completo do que foi experienciado.

Caio Dib aproveitou-se da essência que anima as jornadas de aprendizagem para ir em busca do seu sonho de viajar pelo país para conhecer experiências educativas inspiradoras. É o projeto Caindo no Brasil, cujo livro retrata algumas ótimas histórias como a de Seu Luiz, meu conterrâneo de Minas Gerais. Caio narra o encontro que teve com ele numa viagem por terras mineiras. Durante nossa conversa, ele me contava sobre assuntos que circundavam sua realidade e que passavam pela nossa janela do ônibus. Ele sempre completava com “mas você deve saber disso, né? Você estudou!”.

Na maioria das vezes, não sabia. Eram saberes populares ou conhecimentos necessários para a realidade dele. Não sabia medir um hectare apenas olhando, não sabia fazer o parto de uma vaca, não sabia quanto custava um caminhão carregado de madeira para se fazer carvão.

Esse trecho assinala, por um lado, o relativismo cultural que Paul Feyerabend argumenta, em algumas de suas obras, ser imprescindível para entender a aprendizagem ou o conhecimento. A sabedoria que Seu Luiz demonstrava pertencia a um mundo completamente diferente do que o que Caio habitava. No caso, poderíamos dizer que é “sabedoria popular”, mas penso que talvez esse termo não consiga exprimir as singularidades existentes em cada fala e em cada contexto. Sabedorias são várias, e populações também.

De outro lado, percebo a beleza da narrativa construída pelo Caio, que emana de sua escolha por simplesmente contar histórias. Toda vez que estabeleço contato com iniciativas assim, me lembro da provocação que Ian Mitroff se fez, retomada por Juanita Brown: a questão então não é se contar histórias é ciência, mas sim “será que a ciência consegue aprender a contar boas histórias?” (tradução livre). Assim, por esse caminho, vejo aproximarem-se os mundos da poesia e da racionalidade, da ficção e da realidade, da arte e da ciência. Tudo são histórias.

Fabian Körner, o journeyman que foi jornalista em Cuba e percorreu o mundo para aprimorar seu talento e se enriquecer de experiências diversas e interessantes, escreveu um livro para contar sua história. Segundo ele, a tradição dos journeymen aponta que eles devem sempre compartilhar seus momentos mais marcantes com a comunidade. Faz parte da jornada.

Um padeiro medieval e seu aprendiz. “Journeymen” contemporâneos reelaboram tradição da Idade Média: viajar pelo mundo em troca apenas de hospedagem e experiência

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