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domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre ter fé e ser criança

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05/10/2015 14h29 – Atualizado em 05/10/2015 14h29

Crônicas de uma Alma Solta

Por Luiz Peixoto

“Eu fico com a pureza das respostas das crianças:
É a vida! É bonita e é bonita!
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
Cantar,

A beleza de ser um eterno aprendiz”

(Gonzaguinha)

Todos nós, em menor ou maior grau, temos lembranças da infância, temostraumas e alegrias guardadas, e isso nos torna o que somos. Eu fui uma criança como muitas outras. Nasci na Fazenda Olhos D´Água, onde meu pai era trabalhador rural,peão, labutando com o gado dos outros o dia todo e minha mãe cuidava do quintal, que na roça significa porco, galinha, horta e pomar, da casa e da minha irmã. Vim ao mundo por mão de parteira, aparado pela minha vó, em casa mesmo, segundo o que me contam, com muito choro de minha parte e alegria do resto da casa que estava cheia me esperando. Eram outros tempos, outra lógica em 1971.

Como muitas famílias que viviam no campo, quando os filhos chegavam à idade escolar, a única opção era migrar para a cidade, afinal não haviam escolas do campo e nem transporte como existe hoje. Lá vieram meus pais para Amambai. Minhas primeiras lembranças são de uma casa de madeira, com cozinha e quintal grande, porco e galinha no fundo do quintal e um grande pé de manga (nem sei se era tão grande, mas para crianças tudo parece grandioso). Meu pai trabalhando de carpinteiro o dia todo, cortando cabelos dos amigos e parentes nos fins de semana e minha mãe costurando. Em casa o som mais ouvido era o do pedal da máquina de costura. O quintal acabava sendo nosso reino encantado das brincadeiras.

Não tinha essa esperança de em outubro ganhar brinquedo no dia das crianças, aliás nem sabia que esse dia existia. Quando a gente é pobre, presente bom é prato cheio na mesa. E isso nunca faltou. Pelo que me lembro nunca fui apegado a brinquedos, nem um deles ficou na memória, e a gente só guarda na memória o que tocou o coração. Porem lembro bem da galinha manquinha, não confundam com a moda da galinha pintadinha, por sinal chata pra caramba! Era uma galinha carijó, de uma perna só, que foi me dada de presente nem sei porque e nem por quem. Um dia ela entrou, como todas faziam, dentro do espaço que ficava o porco, o famoso chiqueiro, e eu entrei em desespero. Com uns 4 anos de idade eu já tinha noção de vida e morte e acreditava piamente que o porco ia matar e comer a minha galinha. Fiz o maior escarcéu até que alguém tirasse ela de dentro do chiqueiro. Coisa de criança que acredita!

Mesmo sem muita prática religiosa, íamos à missa de domingo. Uma madrinha minha passava e nos pegava para irmos quando o pai ou a mãe não iam. A imagem da igreja Matriz, Nossa Senhora Auxiliadora, ficou impregnada na memória. Eu passava a celebração inteira encantando com a cruz que se formava no teto e com aquele homem vestido diferente, em pé lá na frente. Confesso que foi um choque quando voltei para Amambai e vi a velha igreja no chão! Do que ele dizia ou fazia só fui saber bem mais tarde. O que me atraia era o espetáculo, o diferente. No natal então nem se fala, cores e sons de outro mundo para uma criança que em casa só tinha um rádio velho para dar notícias, e antigamente as estações de rádio mais falavam do que tocavam música, mas pensando bem, não mudou muita coisa para hoje em dia…

Eu acreditava solenemente que no final do ano, um velho gordo e barbudo, entrava em casa por um fresta da janela e deixava um presente para mim e outro para minha irmã. O ano que não dava para pai e mãe comprar, diziam que o velho não tinha podido vir, e isso nunca foi nenhum problema. Eu acreditava que tinha que toda noite recitar a oração do anjo, para que ele me guardasse durante o sono, ainda lembro do “Santo Anjo do senhor, meu querido guardador…”. Eu acreditava que se chupasse manga depois de beber leite poderia morrer na hora, como gosto muito de manga perdi o gosto pelo leite logo na infância. Eu acreditava que quando apagavam a lamparina, não tinha energia elétrica em casa, algum monstro assustador estaria em baixo da cama. Eu acreditava que existia um homem minúsculo falando dentro da caixa de madeira que chamavam de rádio. Eu acreditava, porém algumas dessas coisas nem dizia, afinal eu era o filho homem, mesmo que ainda com 4 ou 5 anos, e não podia demonstrar medo ou fraqueza, tinha que ser criado para ser o forte, o provedor, o dominador.

Ainda bem que não acredito mais em mitologias! Acredito e tenho fé na vida da gente, que inspirada ou não por uma divindade, da sentido a luta do dia a dia. Respeito como princípio de vida, todas as formas de crenças e de fé, e princípio é aquilo de que não abro mão. Admiro quem se dedica a prática eclesial e religiosa.

Tenho fé na humanidade quando vejo pessoas se dedicando a cuidar de outras pessoas, tarefa difícil e necessária, seja nas casas, no lar de menores, no asilo (que hoje chama de lar do idoso, nome doce para fato amargo). Tenho fé na humanidade quando vejo pessoas resgatando e salvando animais na rua, cães e gatos, que foram abandonados por outros humanos. Tento fazer minha parte e nem sempre consigo, mas ainda assim tenho fé.

Espero nunca perder essa fé e nunca parar de acreditar. Afinal as coisas se diluem, como disse Marx “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, mas a esperança, a solidariedade, a fé e a crença não são sólidas. São fundamentos da vida da gente. Mesmo vendo humanos que abandonam humanos, humanos que maltratam animais, humanos que na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, criam Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI – para investigar quem protege as comunidades indígenas sem investigar quem pratica genocídio contra elas, quero e preciso seguir tendo fé na humanidade, não mais esse fé infantil e sim um fé firme e compromissada com a vida. Afinal somos nós que fazemos a vida, como der, ou puder, ou quiser!

“Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo,
Há quem fale que é um divino mistério profundo,
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor.
Pois amada não é, e o verbo é sofrer.
Você diz que é luta e prazer,
Ele diz que a vida é viver,
Ela diz que melhor é morrer
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé,
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser,
Sempre desejada por mais que esteja errada,
Ninguém quer a morte, só saúde e sorte,
E a pergunta roda, e a cabeça agita.
Fico com a pureza das respostas das crianças:
É a vida! É bonita e é bonita!”
(Gonzaguinha)

Luiz Peixoto é Filósofo, pós-graduado em Pedagogia da Alternância. Amambaiense. Professor e Educador.

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